sábado, 19 de abril de 2025

"Bom dia, minhas 100 pombas"

Dias atrás, ao visitar minhas memórias afetivas mais remotas, guardadas nos escaninhos atemporais, deparei-me como o início dos anos de 1970, mais precisamente o ano de 1971, quando ingressei no Curso Ginasial, no então Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória, que posteriormente viria a ser o Centro Educacional Santamariense (sic).

A alegria era imensa, dentro de uma camisa cáqui, de mangas compridas e calça de tergal de igual cor. No debrum da camisa, havia um traço indicativo do ano em que o aluno estudava. Aqueles que ostentavam quatro tracinhos, esnobavam. Eu ainda não. Feliz, estava meu pai, Tião Sapateiro, ao ver meu progresso, quando me fez uma revelação matemática que me deixou deverasmente curioso.

— Quando você for estudar Álgebra Elementar, começar a fazer contas não somente com números, mas com letras também, você vai ver como a Matemática é bonita.

Aquilo me fez pensar muito no que seria operar com letras e números ao mesmo tempo. Tião Sapateiro só estudou até o terceiro ano do antigo Curso Primário, porém, tinha sempre às mãos livros de Aritmética, como os do matemático luso-brasileiro Antônio Bandeira Trajano. Sua diversão era resolver questões envolvendo cálculos. E quase sempre me chamava para participar. Imagina!

Quando, finalmente, comecei a estudar a tal Álgebra, contei-lhe com alegria a novidade. Meu pai, então, apresentou-me uma história que parece haver retirado de livros dos tempos da Carochinha, tempos em que os bichos falavam e ave columbina não era presa para gavião, voraz ave de rapina. Eis o que ele me narrou, logo de manhã, quando me preparava para estudar:

— Numa manhã, um imponente gavião real pousou em uma árvore repleta de pombas brancas, e as cumprimentou, solenemente:

— Bom dia, minhas 100 pombas!

— Bom dia, gavião – respondeu uma delas, que fez algumas ressalvas:

— Cem pombas não somos nós; com outro tanto de nós; com a metade de nós; com a quarta parte de nós, e contigo, gavião, seremos 100.

Finalizada tão graciosa e imagética narrativa, meu pai fez a pergunta inevitável:

— Quantas pombas havia naquela árvore? – E, juntamente com Darci de Seu Abelino Novaes, seu amigo sapateiro, que estava na tenda, ele olhou para mim e esboçou um tímido sorriso no canto da boca, a mostra um ponto de ouro em um de seus dentes, num claro sinal de desafio.

Não sei se resolvi logo, de primeira. Não me recordo que ele tenha me ajudado, todavia, acredito que sim. E achei a resposta da imaginativa questão, que levei para sala de aula, mostrei aos colegas e ao professor de Matemática, Tércio Santana, de apelido Tutes.

Se você, por outro lado, não achou a resposta (ou sequer tentou encontrá-la), a resolução está no final desta crônica. Não se preocupe. Tentei ser bem didático.

Tempos depois, ainda estudante ginasiano, no também distante ano de 1974, o mesmo Centro Educacional onde estudava, abriu as portas para um curso de Eletricista Instalador, realizado nas férias juninas daquele ano, promovido pelo SESI/SENAI e ministrada pelo professor soteropolitano Wilson Bezerra, ex-aluno da Escola Técnica Federal da Bahia.

O curso foi muito bom e proveitoso, pois, ao final dele, consertamos a instalação elétrica do colégio e fizemos a primeira ligação com interruptor three way da nossa cidade, num comprido corredor da escola. Do curso, participaram, além deste que escreve, Charles de Adão Bodeiro, Zé Sugesta, Nem de Tenente, Isoterano, Neto de Seu Antônio Teixeira, Agnelo de
Donaricota, dentre outros.

Ao término do referido curso, nosso professor deixou uma questão de Matemática como lembrança de sua passagem por Santa Maria da Vitória. Na ocasião, o mestre fez a seguinte pergunta:

— Que horas são, se, para terminar o dia, faltam dois terços do que já passou?

Ele nos deixou tão somente a resposta e nenhuma dica a mais que pudesse nos ajudar. E partiu. Nunca mais tivemos notícia dele. Também, é verdade, não o procuramos. Naquele tempo não era fácil como hoje. Nem telefone havia na cidade.

Nos dias seguintes, em nossos passeios noturnos pela linda, romântica e acolhedora Praça do Jacaré dos anos primeiros, sempre nos encontrávamos, nós, ex-alunos de Wilson, e questionávamos sobre o problema por ele deixado. Uns nem tentaram, outros, como Agnelo, por exemplo, tentaram e resolveram, inclusive este cronista.

Agnelo de Donaricota, cujo nome é Agnelo Alves do Nascimento, que se autodeclarava goleiro profissional, acabou por incorporar a forma reduzida, Profissi, ao próprio nome, ficando conhecido, nos campos de futebol, como Agnelo Profissi. Amigo de infância e colega ginasiano, Profissi veio a ser um dos mais festejados professores de Matemática de várias gerações de alunos, fato que acabou por homenagear nosso mestre Tutes.

Por outro lado, quantos aos desafios matemáticos propostos, a resolução da historinha das pombas brancas está no final desta crônica. Se você também tentou encontrar a resposta, parabéns. Se não, pelo menos leu meu texto até aqui. Por isso mesmo, meu muito obrigado!

Ainda quanto à questão das pombas, ela me fez lembrar o livro “O homem que calculava”, do romancista brasileiro, nascido na cidade do Rio de Janeiro, Malba Tahan, heterônimo de Júlio César de Mello e Souza, engenheiro civil e professor de Matemática, em que ele narra a história de um árabe, que teria morrido, e deixado de herança para seus três filhos, 35 camelos a serem divididos segundo as frações: 1/2, 1/3 e 1/9. Esta, no entanto, é mais outra bela poranduba matemática.

Em relação à pergunta das horas, deixada pelo professor Wilson, ela me remeteu a determinado professor de curso pré-vestibular, do qual não me lembro o nome, que nos alertou quanto a questões de Matemática com poucos dados, como foi esta, que envolve interpretação textual. As que têm muitos dados, como o problema das pombas, normalmente são menos difíceis. Será mesmo?

Por fim, em ambas inquirições aritméticas, fico jubiloso quanto à beleza da benquista “Filha do Lácio”, nossa maravilhosa Língua Portuguesa, que consegue, mesmo numa ciência exata como Matemática, criar um cenário deveras onírico que, possivelmente, acabará por despertar até o mais retraído ou disperso aluno. Penso eu!

* * *

Agradecimento aos amigos e colegas da Transalvador, Jailson Cerqueira e Alan Lima, professores de Matemática, por confirmarem minhas respostas. E ao também colega e amigo Marcus Figueiredo, que ler meus escritos antes de publicá-los, o que muito me auxilia nas correções. Obrigado a todos! 

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35 comentários:

  1. Sempre muito criativo e divertido kkk Parabéns!

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  2. Novais, você sempre criativo em suas crônicas. Um grande abraço e Feliz Páscoa.

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  3. Por que Eu Vandinho de Agostinho Relojoeiro figura como anônimo?

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  4. Nossa meu amigo que beleza de crônica. Parabéns!

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  5. Me lembrei de uma pergunta de matemática que sempre faço quando tenho oportunidade a alguém: A soma da idade do pai, da mãe e do filho são 100 anos. O pai tem 10 anos a mais que a mãe , e a mãe tem o dobro da idade da filho. Qual a idade de cada um deles? A pergunta da pomba ao gavião é melhor elaborada e mais difícil de armar a questão matematicamente. Valeu Novais pela crônica mais uma vez, deixando no ar o mistério da resposta: quantas pombas havia na árvore ?

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    1. Boi noite, Preto (Dr. Reinaldo Ataíde). Acho que consegui:
      Mãe = x
      Pai = x + 10
      Filho = x/2
      x + x + 10 + x/2 = 100
      Resolvendo esta equação do primeiro grau, eis as respostas:
      Mãe = 36 anos; Pai = 46 anos; Filho = 18 anos.
      Somando 36 + 46 + 18 = 100 anos

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    2. Acertou , com certeza. Vc e Eu somos filho de dois Tiaozinhos .

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  6. Segundo informações o Wilson foi jogador do Bahea. Neste curso o Izoterano deixou cair um alicate perto do Padre Enzo para assusta lo. Tivemos alguns curtos, nada grave. Agora papai Tião sempre foi um mestre em todos sentidos. Que bom ele ter existido nas nossas vidas. Como sempre mais uma bela crônica. Parabéns.

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  7. Vc sempre se superando. Parabéns

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  8. E eu aqui lendo e nào chegava na resposta kkkque criatividade,li até o fim, cheguei até a recioso quando vi os cauculo que não é o meu forte..parabéns,poeta,crônista Novais(LUCÍLIO ARLINDO).

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  9. [Maria Helena Belinello, via WhatsApp]
    Socorro! Não ia chegar lá nunca! Mas muito legal vou mandar pra minha irmã ex professora de matemática!

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  10. [Cevisa Harmonia, via WhatsApp]
    Que maravilha esse passeio pelas pessoas, histórias e atitudes dos tempos idos que sempre ficam nos arquivos dos miolos pensatórios.

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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  12. [Cláudio Meirelles, via WhatsApp ]
    Excelente, só que não fui muito bom em matemática, admiro quem gosta, parabéns pela crônica. Acho interessante como lembra tantos momentos importantes da sua vida.

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  13. [Kellington de Augusto, via WhatsApp]
    Boa tarde. Matemática foi o meu terror quando estudante. Gostei do texto.

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  14. [Persival Afonso Rocha, via WhatsApp]
    Boa tarde / Boa Noite!!
    É que estou em Málaga e Sevilha, aqui na Espanha no momento. Vou fazer questão de ler amanhã. E que estou aguardando a procissão dos andores da ressurreição de Cristo, que já vai começar. Um feliz Páscoa para você e todos os familiares. Fiquem com Deus e Boa Noite.

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  15. [Zé de Paula (José Ferreira da Cruz), via WhatsApp]
    Boa tarde, meu amigo. Ótima crônica, você tem uma memória espetacular.

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  16. [Maria das Graças de Souza Barbosa, via WhatsApp]
    Linda e reflexiva essa crônica. Parabéns.

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  17. [Ninha Tourinho, via WhatsApp]
    A matemática encanta, entendo seu pai, mas a nossa Língua Portuguesa é algo mais que encanto. Parabéns pela crônica.

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  18. [Joselito Gomes, via WhatsApp]
    Já li, mas preciso ler novamente, novamente e vou continuar lendo, só lendo!!! Não assusta, é que a leitura é tão boa que a gente quer mais...

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  19. [Gilmar Oliveira, via WhatsApp]
    Sempre bom ler suas crônicas, meu poeta! Parabéns! Leitura leve, agradável e cheia de bom humor.

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  20. [Maria Zélia (Coribe/Bahia, via WhatsApp]
    Amei a crônica, Nó. Obrigada por compartilhar. O meu amigo Thiago, que partiu para outra dimensão nessa semana, ia gostar de ver esses cálculos, ele era PhD em matemática, professor da UFG. Grande abraço amigo.

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  21. [Joaquim Neto, via WhatsApp]
    Boa noite!!! Já gostei muito de matemática, pois é uma ciência belíssima e interessante, os antigos filósofos exigiam que seus discípulos fossem geômetras, isso faria com que tivessem bons raciocínios e conclusões quase irrefutáveis, continue, nobre compatrício, com suas crônicas, sempre recheadas de inteligência e bom humor. Fraternal abraço.

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  22. [Ulisses de Sá, via WhatsApp]
    Bom dia, Grande Novais. É um prazer ler seus textos, esse remeteu-me ao ICEIA, um dos melhores colégios de Salvador àquela época.
    Comecei lá, no jardim de infância, e quando no jardim de infância via alunos com aquelas listras na camisa representando a série em que estavam.
    Sobre os problemas matemáticos, achei difíceis de interpretá-los, tentei a resposta de cabeça, mas não foi.
    Obrigado por me levar a lembranças boas do passado.
    Parabéns pelo ótimo texto.
    Abraço!!

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  23. [Olival Serra Santana, via WhatsApp]
    Excelente!!! Santa inspiração! Suas lembranças me fazem pensar em “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu.

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  24. [Valmira Queiroz, via WhatsApp]
    Bom dia, meu amigo. Obrigada pelo maravilhoso texto.

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  25. [Samuel Oliveira, via WhatsApp]
    Que memória maravilhosa, meu nobre... e ainda mais por trazer crônicas tão cuidadosamente escritas, como está!!! Obrigado pelo presente, caro amigo!!!

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  26. [Eusélio Tonhá dos Santos, via WhatsApp]
    Caro amigo Novais! Que bela crônica, começando por narrar sua fase de estudante colegial, quando enveredou pelos conhecimentos matemáticos, com enredos e participações de personagens/fatos correlatos diversos, para, ao final, vir a resposta tanto esperada, principalmente para aqueles que nadam manjam de matemática, como eu! KKK
    Além do riquíssimo vocabulário, como, no trecho a seguir:
    “Por fim, em ambas inquirições aritméticas, fico jubiloso quanto à beleza da benquista ‘Filha do Lácio’, nossa maravilhosa Língua Portuguesa, que consegue, mesmo numa ciência exata como Matemática, criar um cenário deveras onírico que, possivelmente, acabará por despertar até o mais retraído ou disperso aluno. Penso eu!”
    Jubiloso! Parabéns, meu amigo, por nos contemplar com mais uma crônica, matematicamente, histórica!

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  27. [Hélverton Baiano, via WhatsApp]
    Maravilha de crônica, Novais. Eu me admiro como você se lembra de tantos detalhes. Eu nunca conseguiria responder essas questões. Matemática não é para mim, mas consigo me safar em algumas dificuldades.

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  28. [Valdimiro Lustosa Nogueira Soares (Guri), via WhatsApp]
    Eu a li no por inteiro. Gostei muito, sobretudo pela qualidade do ensino de Matemática da época. Sem saudosismo, mas os antigos sabiam mais não só Matemática ou Aritmética, mas também a língua mãe.
    Parabéns.

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  29. [João Sindivaldo de Oliveira, via WhatsApp]
    Fala Novais!
    Muito bom esse passeio lembrando histórias dos tempos que já se foram, fazendo ressurgir momentos importantes na vida das pessoas.
    Essa sua crônica me levou a um mergulho no passado, quando em determinado momento você fala sobre um livro de aritmética de autoria de Antônio Bandeira Trajano. Lembrei de imediato do meu velho pai que faleceu aos 105 anos, lúcido, diga-se de passagem, e que houvera cursado até o 5º ano do chamado Curso Primário; trazia sempre consigo um livro de Aritmética de autoria desse matemático e ficava a se divertir nas horas vagas tentando resolver os chamados problemas de matemática. Recordo-me que esse livro me serviu de base para aprender a resolver questões, quando dos primeiros passos em que me dedicava a estudar para concurso no Baneb em 1967.
    Essa sua crônica é realmente um excelente texto; leitura leve, agradável e de bom humor; tentei rapidamente resolver algumas questões, mas não consegui, matemática não é realmente a minha praia!
    Parabéns pelo texto, viajei no túnel do tempo!!!
    Obs: Repassada a dois grupos dos quais participo.

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  30. [Antônio Bahia, via WhatsApp]
    Boa noite meu amigo!
    Muito boa essa crônica. Sua memória é ímpar. Tem a ver com matemática, ciência que nunca foi meu forte, e de outros tantos mundo afora. Mas sei da importância dela para todos, conforme questões trazidas pelos seus mestres, especialmente por seu saudoso pai.
    Parabéns por mais essa escrita. Um verdadeiro deleite para nós leitores.
    Grande abraço!

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  31. [Thiago Palácio, via WhatsApp]
    Boa noite, figura! Muito boa a crônica!
    Fiquei aqui com Lara relembrando as regras matemáticas e tentando acertar o cálculo.

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  32. [Newilton Borges, via WhatsApp]
    Parabéns, Novais, pela crônica. Como diz o ditado: filho de peixe, peixinho é, comparando com seu pai no raciocínio e lembrança do nosso inesquecível Centro Educacional Santamariense, de muitas histórias boas. Abraço!

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