domingo, 15 de dezembro de 2024

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode prever e prevenir-se de algo que não desejaria. Certo casal, aparentemente inabalável, a viver muito bem o seu papel, estava prestes a descobrir que nem todo amor é para sempre. 

O relacionamento parecia sedimentado no mais puro amor e, apesar de oscilações normais de todo casal de namorados, ninguém duvidava de que um final feliz inexoravelmente viria. Mas, muitas vezes, tudo é só questão de tempo! E o tempo é o Senhor da Vida.


O (in)esperado acontece: aquele casal separa. Cada um vai para o seu canto, tentando, de alguma forma, recomeçar, superar tristezas, mágoas e, claro, zelar pelas boas recordações deixadas. Os fatos estão aí para confirmar o clichê de que “a vida é um eterno recomeço”.

Passaram-se dias, meses e tudo parecia bem distante e calmo, quando então a vida os deixa frente a frente e amor do passado deu sinais de renascimento. Tiveram uma conversa amável. Depois, entrecortada por instantes de silêncio, questionamentos etc. Por fim, até meio desconexa. No entanto, portaram-se como pessoas adultas e conscientes de que cada um representa para o outro. Claro, o saldo foi bem positivo. Valeu o reencontro, pelo menos ficou flagrante de que uma amizade muito bonita poderia florescer. Há quem não duvida de que amizade é miniamor.

Este reencontro aconteceu num sábado, à noite, de um mês qualquer, de um ano já bem distante. Depois dele, cada um seguiu seu caminho, levando certamente o desejo de tentar de novo. Porém, em nome daquilo a que se chama razão, prometeram, cada um a si mesmo, “que dariam mais um tempo”. E o casal promissor de outrora continuou separado.

O lado pitoresco ou tragicômico que deu motivo a esta historieta aconteceu logo no domingo seguinte. Depois de encontrar-se desperto de um sono tranquilo e reparador, no entanto, ainda muito ensimesmado e distante, a relembrar naturalmente o papo que mantivera na noite passada com sua ex-musa, ele resolveu comprar um jornal numa banca mais próxima, para saber, dentre outros assuntos, das novidades do seu time preferido, o Tricolor Carioca. Estava a fim de espairecer!

Despreocupadamente, viu crônicas esportivas e deu uma espiadela no noticiário político. Sem mais o que fazer, passou a ler o Caderno de Lazer & Informação e se deteve na seção sobre Horóscopo, do Jornal A Tarde, de Salvador. Embora seja assunto pouco atrativo para si, lembrou-se do reencontro do dia anterior com a ex-namorada e, por via das dúvidas, achou prudente conferir as predições sobre o amor.

Ao ler e reler as previsões zodiacais daquele periódico, notou que ali se tratava de algo por demais burlesco, para entretenimento, e não escritos sérios da astróloga Madame SulaMita, como ele imaginou. Ainda assim, responsabilizou o destino ou, mais grave ainda, amaldiçoou a fatalidade.

Escritos em hilariante “portunhol”, reproduzo, ipsis litteris, os conselhos funestos do Horuescopo de Madame SulaMita, para o signo de Escorpión (o dele):

Non hay jeito, amiguito. Poña uno disco de Dalva de Oliveira en la radiola, apague la luz e vá curtir su passion. Su única saída és uno copo de viño, uno ombro amigo e el bolero, de los anticos. O uno tango. Argentino. Puedes optar. Solo non puedes esperar el retuemo de su amor. Isto non acontecerá. Mas tanbién puedes optar por su viziño. Non convence. Más consuela.

Para o signo de León (o dela), fazendo as devidas adaptações, visto que o Horuescopo de Madame SulaMita pareceu-me destinado ao público masculino, ele constatou predições ainda mais sombrias:

Mi amigo, olvida este amore que non tien más nadie a ver. Que más tu espieras deste relacionamiento? Que ela vuelte para ti? Puedes desistir e partir para otra. Mi bolita me muestra su mujer en una bella playa, con uno gato de fechar comércio e una tanguita de subir até el valor del cruzado. No bicho, cabrón.

E aí, como justificar uma brincadeira inofensiva de jornal que, parcialmente, revelou-se um fato? Pelo menos, certo é que, para ambos, uma das “previsões” foi certeira e fatalística: “Solo non puedes esperar el retuerno de su amor. Isto non acontecerá”.

E... não aconteceu! Os dias futuros confirmaram o vaticínio da Madame SulaMita.

Finalmente, de quem é a culpa? Do destino? Da fatalidade? Ou, comodamente, diria que são fatalidades do destino? Não importa quais sejam as respostas, elas, decerto, não justificarão os desígnios da sorte. Ou da vida.

Agosto/1988

Referência:
NOVAIS NETO. Flutuando na areia. Edição do autor: Salvador, 1988. 112p, p. 103.

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