domingo, 4 de agosto de 2024

Peripécia$ do Plano Real

Nesta crônica, relembro alguns fatos ocorridos durante a implantação do Plano Real que, no dia 1º de julho último, completou seu trigésimo aniversário de adoção no País.

Mais uma vez, nós, brasileiros, estávamos às voltas com mais um plano econômico do Governo. São tantos planos, tanta mudança de moeda, que saber se um níquel vale ou não vale é problema para banco resolver. Mas será que resolve mesmo?

Durante a última troca monetária, em julho de 1994, a confusão não foi menor. Ou melhor, foi maior ainda, dada a magnitude atingida, agravada principalmente porque a paridade não foi de mil para um, como normalmente acontecia. Isto é, 1.000,00 Cruzeiros, por exemplo, passou a valer 1 Cruzado.

Desta vez, no entanto, foi diferente e complicado: 2.750,00 Cruzeiros Reais passou a valer 1 Real, a chamada Unidade Real de Valor (URV). Foi nessa época que 1 Real valeu 1 Dólar Americano. Digo isso só para trazer lume àqueles que, eventualmente, nem se lembravam mais desse “fenômeno” pecuniário.

Cédula de R$ 1,00 - Primeira Família do Real (em circulação) - Julho / 1994. Foto: Novais Neto
A dificuldade tornou-se grande por envolver uma divisão meio complicada para muitos. E, para amenizar o problema, surgiram as tabelinhas de conversão, as famosas tablitas: mais um bom “jeitinho brasileiro”, sempre portada por muita gente. E gente sabida. A verdade é que a tablita facilitava muito, de fato.

Quando a troca estava sendo feita, logo nos primeiros dias, fui a uma agência bancária em Santa Maria da Vitória (estava em férias), para fazer a conversão de alguns trocados para a nova moeda. Recebi alguns reais, em moeda e em papel moeda. Por outro lado, fiquei estarrecido com a inusitada tabela de conversão confeccionada por aquele banco, coisa de quem não dispensa um só centavo.

Considerou o referido banco que CR$ 50,00 seria a menor fração da moribunda moeda, o Cruzeiro Real, desprezando – de propósito – as de CR$ 0,50; CR$ 1,00; CR$ 5,00 e CR$ 10,00, fazendo a “bonita” conversão, meio parecida com liquidação: CR$ 50,00 vale R$ 0,01 (seria R$ 0,018) e CR$ 100,00 valem R$ 0,03 (seria R$ 0,036). Em razão de a conta gerar uma dízima periódica, o banco não arredondava o valor, apenas cortava o algarismo excedente, no exemplo, o “8
 e o 6

Resultado de minhas contas que fiz, na ocasião, com base na tabela daquela instituição financeira. Se elas estiverem certas, ao trocar aquele banco 123 moedinhas de um centavo de real (algo bem provável, pela intensa movimentação de pessoas), estaria, no final do expediente, a lucrar, sem qualquer esforço, 2.750 cruzeiros reais, ou seja, um bonito “realzinho”.

A confusão foi tanta que presenciei caixa de banco destrocando dinheiro, vez que não havia como dar troco no novo padrão, dada a escassez do mesmo. E o banco, por sinal, era o mesmo que estava fazendo “aquela” conversão. Só que, desta vez, não lhe cabe qualquer culpa. Estava até ajudando as pessoas.

Saí, então, com a nova grana, exibindo-a a um e a outro, quando encontrei Erlônio, exímio “fazedor de conta de cabeça”, que me convidou para tomar uma cerveja, a fim de testar a credibilidade da moeda do presidente. Aceitei, só para ver a confusão.

Escolhida a vítima, Tõi, do antigo Bar Bola Branca de Tõi de Agostinho. Lá, bebemos uma cerveja e lhe demos dois reais para tirar um real e dez centavos (arredondados) ou, então, três mil cruzeiros reais, correspondentes ao preço da mesma. E ficamos a esperar pelo troco.

Um clima de expectativa pairou no ar. Nem quis olhar para Erlônio, pois estava certo de que ele daria uma boa gargalhada e todo o plano iria por água abaixo. Ficamos, sem pressão, a esperar o resultado, que não tardou a vir.

– Poeta, eu não tenho troco, não. Depois você me paga – propôs o dono do bar.

– Não! Não! De jeito nenhum! Pode me dar o troco em cruzeiros reais mesmo, a moeda velha, eu aceito.

Ao perceber que ele estava meio enrolado, tentei até dá minha contribuição. Ajudar, claro!

– Se você me der o troco em reais, é fácil: basta me voltar noventa centavos. Como eu sei que você não tem, me devolva dois mil e quinhentos cruzeiros reais. Está certo, figura!? E estamos conversados!

Erlônio, que observava nosso papo atentamente, quase a explodir em riso, confirmou, com seriedade, o que eu havia dito ao dono do bar.

Tõi, mais um vez, olhou-nos, meio desconfiado, e, tentando livrar-se do problema, insistiu:

– Tome seu real, poeta. Depois você me dá os dez centavos. Deixa de “sugesta”, moço!

– Não. Assim não. Me dá o troco em cruzeiros e tudo fica bem. Pode acreditar. A conta tá certa.

O dono do bar, maldizendo aquela cerveja e com receio de inevitáveis gozações, saiu-se muito bem, pelo menos para o bem da freguesia.

– Ô moço, sabe de uma coisa? A partir de hoje, a cerveja aqui é um real e ponto final. Tome seu dinheiro de volta, que minha cabeça não tá pr’essas coisas, não. Tenho mais o que fazer. Até logo, cambada!

Tudo isso aconteceu numa sexta-feira. No outro dia, sábado, seria a feira da cidade. E, por certo, a confusão seria bem maior. Muitos aproveitadores iriam lavar-a-égua, como diria Erlônio.

Bem cedo, fui à feira e presenciei cenas impagáveis, dignas de enriquecer o folclore popular, como as que registro a seguir:

– Quanto custa a dúzia da banana caturra, dona?

– Oitenta centavo.

– Então, eu vou levar uma dúzia, tá vendo? – apontando para a fruta – Cobra aí, por favor.

A vendedora recebeu um níquel de um real do freguês e deu-lhe o troco no valor de oitenta centavos de cruzeiros reais. Quando aquele senhor percebeu o erro, soltou a língua:

– Oxe! Não tô entendendo mais nada. A senhora tem que me voltar é oitenta centavos de reais ou então, dois mil e duzentos cruzeiros reais. Isso aqui tá tudo errado! Assunta direito, pra ver!

A velhinha olhou fixamente para aquele senhor com cara de bancário, e caprichou na resposta.

– Home, quá. Cê tá me achano cum cara de besta, seu moço. Cê acha qu’eu vou dar um tantão de dinheiro desse nu’a niquinha dessa. Sô besta, não!

Continuei na feira a curiar as contendas e, vez por outra, me deparava com “matemáticos” tirando dúvidas ou resolvendo pendengas. Nada, entretanto, que merecesse registro. Nada? Veja esta.

Como voltaria a Salvador no domingo, resolvi comprar algumas coisas e comecei logo pela indispensável rapadura. Parei numa banca e indaguei o preço:

– Quanto custa a rapadura, meu amigo?

– Setenta e dois centavo.

– E em cruzeiros reais?

– Míli quinhento, fregueis.

Agradeci e fui a outras bancas para comparar os preços, haja vista que muitos sabidinhos estavam convertendo à razão de um para mil. Ou seja: o que valia um mil cruzeiros reais passou a custar um real, resultando num aumento de 275%. É mole?!

A pesquisa foi válida e pude constatar que o rapaz não estava me vendendo caro, razão porque voltaria à sua banca. Nesse ínterim, encontrei meu pai – desafeto de calculadora, pois prefere fazer contas na ponta do lápis, – a garantir-me que pelo preço pudesse comprar. Estava muito bom.

Voltei, portanto, àquela banca e perguntei ao moço quanto ele me faria se eu levasse duas rapaduras. Ele fez os cálculos e brindou-me com esta pérola:

– 144 centavo! Num dá pra fazer por meno, não. Um dia de enxada de um trabaiador tá custano muito mais caro, seu moço.

E sempre que ocorriam esses planos, era “proibido” aumentar os preços dos produtos e para isso existiam os temidos fiscais. Evidentemente que os serviços públicos ficavam congelados por algum tempo, não aumentavam mesmo.

Aqui em Salvador, no entanto, deparei-me como algo inusitado. Como uma mudança acontecida em plano anterior ao Plano Real, que se equiparou a URV a 1 dólar. Nos planos anteriores, as divisões eram quase sempre por mil, isto é, o que valia 1 mil cruzeiro, por exemplo, passaria a valer 1 cruzeiro novo.

Cédula de Cr$ 10,00 válida entre 1º/11/1942 e 30/11/1964. Foto: Novais Neto

Cédula de NCz$ 50,00 (tornou-se Cr$ 50,00) válida entre 6/1/1989 e 15/03/1990Foto: Novais Neto
Num desses planos, creio que foi de Cruzado para Cruzado Novo, o valor que se pagava no Elevador Lacerda era de 50 centavos (Cz$ 0,50) que, dividido por mil, passaria a ser NCz$ 0,005 (meio centavo), moeda inexistente no nosso sistema monetário. Para resolver o impasse, a Prefeitura de Salvador majorou a tarifa para NCz$ 0,01 (um centavo). Isto é, o valor da passagem aumentou 100% em pleno congelamento de preços. Aí pode, né?!

Ainda sobre Planos Econômicos:


Como já foi dito no começo desta crônica, quando acontecia troca de moeda, era aquela apreensão. A primeira que presenciei, foi ainda no final dos anos 1960, quando o Cruzeiro (Cr$) passou a ser Cruzeiro Novo (NCr$). Bem jovem que era, apenas achava bonitinhas aquelas cédulas como a da Princesa Isabel, de cinquenta cruzeiros (Cr$ 50,00) com carimbo do Banco Central, informando que ela valia 5 centavos (NCr$ 0,05). E, na parte superior central da cédula, ainda mostrava que o nome oficial do Brasil era República dos Estados Unidos do Brasil.

Cédula de Cr$ 50,00 (tornou-se NCr$ 0,05) válida entre 1º/11/1942 e 30/11/1964Foto: Novais Neto
Por conta destas constantes trocas monetárias, devido a altas inflações, que chegou a 89,39% ao mês, em março de 1990, o que não ocorre nestes níveis há 30 anos, completados em julho último, cheguei a cometer alguns equívocos, que os narro a seguir:

O primeiro deles, foi em 1989, quando preenchi incorretamente um cheque. Nessa época, trabalhava no Banco do Estado da Bahia (BANEB) e nós, funcionários, preenchíamos vários cheques e pedíamos ao contínuo para sacar no caixa. Nosso contínuo era Seu Zé, um senhor de idade, que fazia isso com absoluta naturalidade. Nesse dia, entretanto, retornou a esbravejar:

— Olha, Seu Novais, não gosto de brincadeira comigo, não, sou um homem sério. O caixa ficou rindo da minha cara e me disse que essa moeda não existe no Brasil, não — eu explico:

Ao preencher um cheque de oito cruzados novos (NCr$), grafei oito cruzados “novais”. Por serem iguais as três primeiras letras de “novos” e “novais” (nov), a pressa ou minha falta de atenção, levou-me a cometer este erro. Resultado: tive que fazer outro cheque, com bastante cuidado, e eu mesmo ir ao caixa sacar a grana. Não tive coragem de pedir a Seu Zé, o homem estava a espumar e não aceitou meus pedidos de desculpa. Que Deus o tenha!

Cheque de NCr$ 8,00 preenchido “Oito cruzados novais” (1989). Foto: Novais Neto
Ainda nesse período de inflação alta, o BANEB, para dar credibilidade ao seu cheque especial, o Chequemate, inventou o PhotoChequemate. Tive um talonário dele e, de férias em Santa Maria da Vitória, “troquei” um cheque na empresa do meu irmão, Hermes Novais, “Hermes Laboratório Fotográfico”, cujo caixa era Glécia Almeida, nossa irmã. E retornei a Salvador.

Como sempre acompanhei os lançamentos em minha conta-corrente, percebi uma diferença que não foi possível localizar. Pensei, pensei e deduzir que poderia ser este cheque passado em minha cidade. Liguei para Glécia e ela me deu esta resposta:

— O cheque tá aqui comigo. Num depositei, não!

— Não depositou por quê? — quis saber.

— Pensei que fosse brincadeira sua, um cheque com foto — e prossegui.

— Como você fechou o caixa nesse dia, então?

— Botei aqui que você pediu o dinheiro emprestado, inclusive, falei com Hermes e ele não me disse nada.

Pedi a ela que depositasse o cheque o mais urgente possível, para que eu não recebesse a pecha de caloteiro, o que foi feito.

Cheque Especial do Banco do Estado da Bahia (BANEB) - PhotoChequemate. Foto: Novais Neto
A propósito de preenchimento de cheque, sempre procurei ter o maior cuidado, o que nem sempre dava certo. Sobre o episódio a seguir, que não tem, necessariamente, nada a ver com inflação alta, pois foi no início dos anos 1980, quando ingressei no BANEB, ao preencher um cheque do antigo Banco Econômico, nominal ao Paes Mendonça S/A, cometi um erro, que o caixa também não notou, mas o funcionário do banco constatou e devolveu o cheque.

Ao preencher o valor de Cr$ 124,90, por extenso, acabei omitindo a moeda, que aqui seria o cruzeiro, e ficou assim: “Cento vinte e quatro [...] e noventa centavos”, que acabou sendo devolvido pelo Banco Econômico, por “erro formal”, como se dizia à época.

Cheque de Cr$ 124,90 preenchido com omissão da palavra “cruzeiros” (1980). Foto: Novais Neto
Pois bem, aí estão algumas histórias que eu não poderia deixar de contar, principalmente agora, em que o Plano Real completa 30 anos de lançado, e os mais jovens não sentiram na pele o que era conviver com inflação nas alturas e com as famosas maquininhas de supermercado com seu barulhinho infernal o dia todo, em qualquer turno, sempre havia remarcação de preço de produtos. E corríamos para pegar algum produto antes de o funcionário remarcador chegar.

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Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...