terça-feira, 3 de outubro de 2023

A volta do pai coruja

— Painho, o senhor sabe como é o nome de tio Vando?

Normalmente, começa assim: ela me faz uma pergunta para dar início ao bate-papo e, aí surgem coisas impagáveis, que até reluto em transpô-las para o papel com receio de parecer corujice piegas. Mas... se sou um “pai coruja”, porque esconder tais denguices?

Fernando Pessoa, poeta português, afirma em uma de suas tantas belas poesias que “Todas as cartas de amor são / Ridículas, / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas”. Do mesmo modo – acredito –, eu não seria pai se não escrevesse “corujices ridículas”, porque “cartas de amor ridículas” escrevi um sem-número. Dessa forma, que me perdoem os mais sensatos e moderados, os não corujas.

De retorno à pergunta de Lara, protagonista desta crônica (mais uma vez, veja só!), lhe respondi e perguntei ao um só tempo:

— Sei, sim, Lara. Por quê?

— Então me diz, painho.

— Não, Lara. Não vou dizer. Quero que você diga. Quero ver se você sabe mesmo como é o nome dele.

— Painho, o nome dele não é Vando, não! O nome dele é outro. Eu vi ele dizer no telefone para uma pessoa. Eu fiquei até com vergonha e com muita vontade de rir, cheguei a sair correndo da sala.

— Mas, por que, Lara? O nome dele é tão feio assim ou é engraçado?

— Não, painho, não é nada disso. Esses nomes a gente não fala pras pessoas da rua, não. A gente fala dentro de casa, brincando. Sabia?

— É mesmo, Lara? E que nome é esse? Como é mesmo o nome dele, então? Fala aí, vai.

— Ah, painho, eu não vou dizer, não, tenho vergonha.

— Diga, Lara. Pode dizer – insisti.

— Vandnaldo Valeijo Pinto. “Pinto”, painho, ele falou “pinto”. “Pinto” não é nome de gente, painho, e ele ainda não tem vergonha de falar com uma pessoa da rua pelo telefone. Fiquei com vergonha!

— Mas, minha filhotinha, “Pinto” também é sobrenome de pessoas, não é só o apelido “daquilo”, não. Tenho amigos e colegas que também têm este sobrenome, entendeu?

— Entendi, sim, painho – e fez uma pequena pausa, saindo-se com outra, uma dedução, talvez:

— Me responde, então, painho: se o nome dele é Vandnaldo Valeijo “Pinto”, o nome de tia Isnaia [esposa de Vando] é Isnaia Valeijo “o quê”? “Pinto” também? – e abriu um belo sorriso infantil.

— Lara, o que é isso?! – ralhei.

— O que é isso o quê, painho? Então me explica, vai, me explica... – aproveitei e lhe expliquei como podem ficar os nomes das mulheres quando se casam, embora a mudança não seja obrigatória, porém consensual. E ela acenou haver entendido.

É sempre assim quando paramos para conversar, ouvir suas histórias e deduções... Sinceramente, me divirto muito. Muito mesmo. Divirto-me ainda, ante o aviso que ela me fez certa feita: “Painho, amanhã eu chamo o senhor ‘meia hora em ponto’” ou então quando lhe perguntei se havia almoçado direitinho, e ela me respondeu: “Oh, painho, eu deixei assim no prato, uns 10 centímetros de comida, só foi um pouquinho”.

Tão interessante quanto essas “tiradas”, são suas lógicas inolvidáveis no afã de entender o mundo dos adultos tão carregados de códigos e símbolos, quando me disse certa vez que quem conserta carro é “conserteiro”; quem cuida de plantas é “planteiro”; quem toma conta de porta de prédio é “portador”; quem vende carne é “carneiro”. Ela é uma invencionista mesmo, não tenho dúvida.

Dia desses, lá pelos seus 10 anos de idade, flagrei-a cantarolando, a seu modo, a música 
Amor I love you”, de Marisa Monte, que ela disse adorar:

CD Memórias, Crônicas e Declarações de Amor. 2000 . Marisa Monte.
— Amor ai nove iú. Amor ai nove iú. Amor ai nove iú...

— Lara, não é “Amor I ‘nove’ you”. É “Amor I love you”. “Love pode” significar “amo” ou “amor” em Inglês, a depender da frase. Entendeu?

— Entendi, painho. Mas “nove” também é “número” em Português. Entendeu também?

— Claro que entendi, Lara. Claro que entendi. Você está certíssima!

— E então?!... – e continuou a cantar docemente o seu “Amor ai nove iú”.

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Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...