quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Minha cidade tem nome e sobrenome

Vista aérea do centro de Santa Maria da Vitória (BA). Foto: Hermes Novais.
Tempos atrás, fui a um órgão público do Estado da Bahia, aqui em Salvador, dar entrada num processo de registro de empresa, fazendo gentileza ao amigo coribense, o contador Gilson Rocha. Segundo ele, presencialmente, o evento seria mais rápido. Assim o fiz e recebi um protocolo com data determinada para retorno.

Na data aprazada, fui ao mesmo local e, por desfrutar das benesses do meu sexagenarismo, o atendimento foi rápido até chegar a uma senhora num guichê. A servidora pegou meu protocolo e passou para outra pessoa na retaguarda, a fim de que esta localizasse o referido processo.

Enquanto eu esperava, outro cliente era atendido. Minutos depois, a localizadora de processo deu o ar da graça. E, em voz alta e clara, 
para que todos naquele recinto ouvissem, fez um questionamento que entendi reprovável:

— Quem é o responsável por um processo da cidade de Santa Maria “não sei das quantas”?

No mesmo tom de voz e dando a devida ênfase, repreendi, sem ser tosco:

— Epa! Alto lá! Santa Maria “não sei das quantas”, não. Minha cidade tem nome e sobrenome: Santa Maria da Vitória, por favor!

Quase todos os usuários, naquela sala, voltaram seus olhares para mim, que estava de pé. Alguns aplaudiram, outros fizeram sinal de positivo e os funcionários olharam-me com cara de surpresa, e entreolharam-se interrogativos. Fiquei receoso, a imaginar que a partir daquele momento o atendimento pudesse ser mais exigente e protelatório.

O dito processo então foi passado para a primeira atendente, que amavelmente pediu-me desculpas, a justificar que se tratava de servidora incipiente, sem experiência no trato com o público. Certo é que tudo foi bem rápido, provavelmente, para se livrar de usuário pouco amistoso.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Como descobri o que significa BBMP

Neste pequeno conto, publicado no Matutar Notícias e republicada neste blog, revelo como fiquei sabendo o que significa a sigla BBMP, até então misteriosa para mim.

Ano de 2017, final do Campeonato Brasileiro da Primeira Divisão, fui à Arena Fonte Nova assistir ao jogo Bahia e Chapecoense, e ver a nova Chape, pós-tragédia ocorrida na Colômbia, em novembro de 2016, para fazer algumas fotos, como de hábito, por tratar-se de prazeroso hobby.

Já dentro do estádio, após alguns cliques, despertou-me a atenção uma grande e destacada faixa afixada acima de um dos placares eletrônicos com letras maiúsculas  BBMP  e um escudo do Bahia do lado esquerdo. Tentei associá-las, sem sucesso, à sigla de algum banco patrocinador como, por exemplo, o BBV (Banco Bilbao Vizcaya), o único que me veio à mente na ocasião.

Resisti quanto pude pedir ajuda a algum torcedor. Decidi, no entanto, mesmo receoso de confessar minha insciência clubística ou chamar atenção das pessoas por perto, perguntar a um garoto de seus presumíveis dez anos de idade, sentado ao meu lado direito:

— Meu amiguinho, o que quer dizer aquelas letras acima do placar, BBMP? Você sabe?

Aquele simpático e esperto garotinho virou o rosto para o lado oposto e falou com um cidadão com uniforme do Bahia, a demonstrar aparente indignação ante minha ignorância futebolística:

Foto: Novais Neto. 2017
— Opaí, meu pai, opaí. Ele aqui num sabe o que é BBMP, não.

E, em voz alta, desenvolveu para mim, pausadamente, a emblemática sigla, que me houvera dado curto-circuito nos neurônios:

— Bora, Bahêa, Minha Porra! Tá sabendo agora, meu tio, o que é BBMP?

— Agora, tô, meu amiguinho. Obrigado. Pensei que fosse sigla de um banco.

— Opaí! De novo! Que banco, que nada, meu tio?! Demorô! É mô Bahêa, meu Esquadrão de Aço!

E para arrematar com chave de ouro, digo melhor, com chave de Aço, aquele menino levantou-se, ergueu os braços e, entusiasticamente, vociferou seu grito guerra, que coincidiu com placar eletrônico a anunciar a escalação do Tricolor de Aço, o seu Esporte Clube Bahia, para explosão da delirante galera:

— Booora, Bahêêêa, Minha Pooorra! Booora, Bahêêêa! Booora! Bora! Bora!

Foto: Novais Neto. 2017.
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Em tempo: Conto, revisto e ampliado, publicado originalmente no site Matutar Notícias em 12/4/2018, onde pode ser acessado através do link a seguir e, se desejar, ler alguns comentários alusivos a ele: https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/o-dia-que-conheci-o-bbmp/.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

A volta do pai coruja

— Painho, o senhor sabe como é o nome de tio Vando?

Normalmente, começa assim: ela me faz uma pergunta para dar início ao bate-papo e, aí surgem coisas impagáveis, que até reluto em transpô-las para o papel com receio de parecer corujice piegas. Mas... se sou um “pai coruja”, porque esconder tais denguices?

Fernando Pessoa, poeta português, afirma em uma de suas tantas belas poesias que “Todas as cartas de amor são / Ridículas, / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas”. Do mesmo modo – acredito –, eu não seria pai se não escrevesse “corujices ridículas”, porque “cartas de amor ridículas” escrevi um sem-número. Dessa forma, que me perdoem os mais sensatos e moderados, os não corujas.

De retorno à pergunta de Lara, protagonista desta crônica (mais uma vez, veja só!), lhe respondi e perguntei ao um só tempo:

— Sei, sim, Lara. Por quê?

— Então me diz, painho.

— Não, Lara. Não vou dizer. Quero que você diga. Quero ver se você sabe mesmo como é o nome dele.

— Painho, o nome dele não é Vando, não! O nome dele é outro. Eu vi ele dizer no telefone para uma pessoa. Eu fiquei até com vergonha e com muita vontade de rir, cheguei a sair correndo da sala.

— Mas, por que, Lara? O nome dele é tão feio assim ou é engraçado?

— Não, painho, não é nada disso. Esses nomes a gente não fala pras pessoas da rua, não. A gente fala dentro de casa, brincando. Sabia?

— É mesmo, Lara? E que nome é esse? Como é mesmo o nome dele, então? Fala aí, vai.

— Ah, painho, eu não vou dizer, não, tenho vergonha.

— Diga, Lara. Pode dizer – insisti.

— Vandnaldo Valeijo Pinto. “Pinto”, painho, ele falou “pinto”. “Pinto” não é nome de gente, painho, e ele ainda não tem vergonha de falar com uma pessoa da rua pelo telefone. Fiquei com vergonha!

— Mas, minha filhotinha, “Pinto” também é sobrenome de pessoas, não é só o apelido “daquilo”, não. Tenho amigos e colegas que também têm este sobrenome, entendeu?

— Entendi, sim, painho – e fez uma pequena pausa, saindo-se com outra, uma dedução, talvez:

— Me responde, então, painho: se o nome dele é Vandnaldo Valeijo “Pinto”, o nome de tia Isnaia [esposa de Vando] é Isnaia Valeijo “o quê”? “Pinto” também? – e abriu um belo sorriso infantil.

— Lara, o que é isso?! – ralhei.

— O que é isso o quê, painho? Então me explica, vai, me explica... – aproveitei e lhe expliquei como podem ficar os nomes das mulheres quando se casam, embora a mudança não seja obrigatória, porém consensual. E ela acenou haver entendido.

É sempre assim quando paramos para conversar, ouvir suas histórias e deduções... Sinceramente, me divirto muito. Muito mesmo. Divirto-me ainda, ante o aviso que ela me fez certa feita: “Painho, amanhã eu chamo o senhor ‘meia hora em ponto’” ou então quando lhe perguntei se havia almoçado direitinho, e ela me respondeu: “Oh, painho, eu deixei assim no prato, uns 10 centímetros de comida, só foi um pouquinho”.

Tão interessante quanto essas “tiradas”, são suas lógicas inolvidáveis no afã de entender o mundo dos adultos tão carregados de códigos e símbolos, quando me disse certa vez que quem conserta carro é “conserteiro”; quem cuida de plantas é “planteiro”; quem toma conta de porta de prédio é “portador”; quem vende carne é “carneiro”. Ela é uma invencionista mesmo, não tenho dúvida.

Dia desses, lá pelos seus 10 anos de idade, flagrei-a cantarolando, a seu modo, a música 
Amor I love you”, de Marisa Monte, que ela disse adorar:

CD Memórias, Crônicas e Declarações de Amor. 2000 . Marisa Monte.
— Amor ai nove iú. Amor ai nove iú. Amor ai nove iú...

— Lara, não é “Amor I ‘nove’ you”. É “Amor I love you”. “Love pode” significar “amo” ou “amor” em Inglês, a depender da frase. Entendeu?

— Entendi, painho. Mas “nove” também é “número” em Português. Entendeu também?

— Claro que entendi, Lara. Claro que entendi. Você está certíssima!

— E então?!... – e continuou a cantar docemente o seu “Amor ai nove iú”.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Soterópolis, meu amor

Para comemorar meus 45 anos de chegada a Salvador, completados em 1º de agosto deste ano, achei por bem republicar esta crônica aqui no blog, uma vez que a mesma já foi divulgada no jornal on-line do Correio da Bahia, em 29/03/2017, por ocasião do 468º aniversário da cidade, quando, naquele ano de 2017, completei 40 anos de acolhida nesta bela Soterópolis.

*  *  *

Há muito planejei escrever esta crônica para demonstrar minha gratidão e amor a Salvador, cidade que me adotou por filho. O tempo, no entanto, foi passando indiferente a tudo e a todos, e somente agora, março de 2017, vi inadiável minha promessa, bem próximo de completar, em agosto vindouro, 39 anos de vida soteropolitana. Portanto, tempo suficiente para sentir-me filho de Soterópolis.

Lembro-me, como toda nitidez e emoção, das primeiras imagens da Bahia – como muitos ainda se referem à Capital baiana lá na minha terra natal, minha reverenciada e amada Santa Maria da Vitória –cujas paisagens pueris também permanecem bem vivas em minhas reminiscências.

Era uma segunda-feira, primeiro dia do mês de agosto de 1978, dois dias após o Bahia haver enfrentado o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro daquele ano, 30 de julho, quartas de final, quando o resultado da partida, 1 x 1, classificou o time paulista para a fase seguinte. Douglas fez 1 x 0 para o Bahia e o alviverde Toninho empatou.

Cheguei pela manhã, depois de quase 20 horas de viagem. Naquele tempo, tínhamos que ir até Bom Jesus da Lapa, distante 84 km, para tomar o ônibus que, se não quebrasse, chegaria a Salvador de manhãzinha. Felizmente, tive sorte porque tudo aconteceu como previsto.

Fui direto para a Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, no bairro de Nazaré. Renan, meu primo, que já morava aqui há uns dois anos, apressou-se a mostrar-me a Capital. Levou-me, primeiramente, à Fonte Nova, quando pude ver o palco da batalha de dois dias atrás. Eu havia escutado o jogo pela Rádio Globo porque, à época, minha cidade não dispunha de sinal de tevê.

Depois, mostrou-me a praça do poeta, cantarolando “A Praça Castro Alves é do povo / Como o céu é do avião / [...]”. Na música, inclusive, a criatividade de Caetano Veloso introduziu ao poema “O povo ao poder” o nome do seu autor, uma vez que os versos de Castro Alves dizem o seguinte: “A praça é do povo / Como o céu é do condor [...]”.

Logo após ter-me encantado com tanta coisa bonita, uma imagem continua única: a Baía de Todos os Santos vista do Elevador Lacerda. Para quem nasceu aqui e todos os dias a vê, nem percebe sua grandiosidade. É algo majestoso, encantador, estupidamente deslumbrante. Até hoje revejo aquela paisagem como se tudo tivesse acontecendo no exato momento.

Elevador Lacerda. 1980. Foto: José Gregório Nepomuceno.





Morei na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória por mais de seis anos. Lá consolidei velhas amizades e fiz novas. Aprendi a viver em grupo e, sobretudo, labutar com gente, o que é extremamente difícil, mas que tem suas recompensas. Passei por um relacionamento que não deu certo, todavia deixou-me um celestial presente: minha filha Lara, de 21 anos.

Durante estas quase quatro décadas, conquistei muitos amigos. Salvador é uma terra maravilhosa de um povo camaradeiro, irreverente, trabalhador e – nem precisa dizer – extremamente festivo. Muitos até hoje, ex-colegas do Baneb, principalmente, chamam-me tabaréu. Entretanto, jamais percebi neste tratamento qualquer sinal de discriminação ou menosprezo. A verdade é que, também, assumo-me como tal e gosto de sê-lo, não vendo, portanto, nada que me inferiorize. Só sei que, como tabaréu, tenho conquistado admiração e respeito, e isto já me faz muito bem.

Vista do Banco do Estado da Bahia, década de 1980.
Dentre tantos e tantos amigos soteropolitanos, Rasta Man é um deles. Aliás, ter o apelido de Rasta por aqui não é guardar anonimato, já que ser um rastafári é algo bem comum entre os afrodescendentes baianos. Este, no entanto, a que me refiro, é minha corrente, cheio de gíria, alegre, comunicativo, sangue bom, definindo-o melhor.

Certa feita, encontrei Rasta a subir a Ladeira da Preguiça como se trouxesse às costas todo o peso do mundo, tal qual o titã Atlas. Embora me tenha dito estar com bastante pressa, não parecia nenhum pouquinho. Parou e, com um sorriso bem maior que a própria boca, cumprimentou-me festivamente:

— Qualé a de mermo, minha cor? Tava mermo querendo te ver. Tem uma pra te contar! Tá ligado, papá, naquele chegado nosso? Tá levando o maior virote da patroa! Opaí, bróder, cumé que pode! Fiquei virado, pai!

— É mesmo, rapaz!

— E num é, não, papá?! Me deixe queto, viu! Depois te conto, nego veio.

A irreverência, o bom humor, a festividade estão estampados nos olhos e nos gestos dos salvadorenses. Porventura, deixam escapar palavrões, a possível conotação chula é diminuída e disfarçada pelo sotaque bonito e manhoso, sempre carregado de poesia.

Isto me faz lembrar, certa vez, quando passava de automóvel perto de um desses muitos campinhos improvisados em gramados de praças, cuja bola chutada por um dos jogadores foi parar na meio pista. Reduzi a velocidade do carro e um garoto a pegou. Lá do meio do campo, veio-me o agradecimento:

— Brigado, pareia! O bróder aí é sangue bom!

Entre tantas e tantas irreverências do povo desta terra, uma é impagável. Eu e meu primo Renan, ainda estudantes da Universidade Federal da Bahia, voltávamos para casa, quando o ônibus em que estávamos, Federação–Praça da Sé, já se aproximando do fim de linha, teve que parar bruscamente.

Muito apressado e sisudo como sempre, Renan achou logo de ficar em pé no corredor, com as mãos soltas, bem próximo da porta de saída. Atrás dele, portou-se um guarda-roupa: um rasta de quase dois metros de altura e corpanzil sarado.

O ônibus arrancou bruscamente e meu primo, desatento, foi atirado para trás, rumando o traseiro no baixo ventre do negão, que exclamou com a boca do tamanho do mundo, arrancando risos de deboche dos passageiros:

— Eta porra, se tivesse dura, tinha quebrado!

Renan, com a cara mais fechada ainda e com o zoião bem arregalado, limitou-se a olhar para trás, sorrir timidamente e sair  de fininho  como se não fosse ele o motivo de incontroláveis gargalhadas naquele transporte coletivo.

E eu? Eu fiquei quietinho, sorrindo pelo canto da boca com medo de Renan se virar contra mim, só porque teria achado graça em algo tão sem graça... para ele, claro!

Salvador (BA), 23 de março de 2017.

Referências:

NOVAIS NETO. Soterópolis, meu amor. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/novais-neto-soteropolis-meu-amor/. Acesso em: 23 ago. 2023.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O ponto e o susto

Naquela manhã de 30 de janeiro de 2012, segunda-feira, como habitualmente faço, às 5h30, mais ou menos, já estava no Dique do Tororó a fazer minha deliciosa caminhada. Céu nublado e dia frio para os padrões soteropolitanos, todavia muitíssimo agradável, ensejavam uma paz bucólica, carregada de boas energias, ofertante de serotonina e dopamina.

Durante a caminhada, encontrei alguns corredores e andadores, companheiros antigos e recentes que têm o privilégio, assim como eu, de curtirem a beleza daquele belíssimo espelho d’água. Nem tudo, entretanto foi tão bonito assim, pois presenciei em frente ao Habb’s, antiga Usina Geradora do Dique, a queda de um motociclista que, felizmente, nada de grave lhe aconteceu.

Ao retornar para casa, dei início à rotina matinal: liguei o computador e deixei rolar as músicas que me trazem a lume minhas doces memórias afetivas. Em seguida, tomei um banho e sorvi uma vitamina exótica, extravagante ou gororoba para alguns amigos, nutritiva e muitíssimo deliciosa para mim. E ponto final! Ou c'est fini, no meu francês de incipiente ou de “menino exibido”.

De volta ao computador para organizar minhas atividades diárias, uma vez que no final de semana não pude fazê-lo por estar de plantão na Transalvador, onde trabalho, fui ver o correio eletrônico dos meus tempos de bancário. Modernamente, a expressão voltou às origens, regrediu, isto é, retornou para o Inglês: e-mail (abreviatura de eletronic mail, que numa tradução livre é o meu jurássico e inolvidável “correio eletrônico). “Vai lá entender essa humanidade!”, por certo diria a sorrir Jurandir Pereira (Buranda), colega da época ginasiana lá pelos idos dos anos de 1970.

A caixa de mensagem normalmente está repleta de lixos eletrônicos que separo dos aproveitáveis e descarto-os sem dó nem piedade. Dentre aqueles interessantes, dois vieram da minha ex-colega e querida amiga do Banco do Estado da Bahia, Hildair Vasconcelos, Hildita, como carinhosamente a apelidei.

O primeiro, por título “Eis o ponto”, mostrava um teste aparentemente sério, de como devemos nos prevenir do Mal de Alzheimer ou de suspeita de que já o “tenhamos”. Em cada página do slide surgia um ponto vermelho, bem pequeno, em algum lugar de uma figura, que deveríamos localizar e dar um clique sobre ele. Ao fazer isso, outra página aparecia e tudo se repetia, porém, noutra figura cada vez mais complexa e de difícil localização do tal ponto, o que acabou me entretendo por demais.

Gradativamente, a dificuldade aumentava, e mais e mais eu ficava envolvido e levando a sério aquele desafio, até que, em determinado slide, o ponto aparece bem facilmente, ao contrário dos anteriores, nem desconfiei. Ao clicar nele, vem a desagradável surpresa: na página, aparece instantaneamente um pavoroso capeta a expelir fogo pelas ventas e sangue pela boca, que ocupa toda a tela do monitor e dá uma horripilante e estrídula gargalhada. Quase caí de costas da cadeira! O coração foi a mil!

– Que zorra, Hildita! Que brincadeira mais besta! – assustado, desabafei comigo mesmo.

Ilustração de Adriel Santos. 2023
Refeito do susto, voltei a ler as demais mensagens. E outra, também enviada por minha amiga, trazia por título “A grande viagem do espírito”. Comecei a ler. Li duas ou três páginas, quando senti o cheiro forte de algo queimando. Levantei-me, de supetão, da cadeira, corri para a cozinha e deparei-me com um cenário antagônico: de um lado, uma panela queimando com dois ovos esturricados a feder e aquele fumaceiro atemorizante; de outro, um filtro aberto e uma moringa a derramar água. E eu pensei comigo mesmo ante aquela quase “tragédia”: Até você, poeta, dando mole pro capeta?

Obrigado, Hildita, mesmo assim! Se, por um lado, seus e-mails me entretiveram tanto, a ponto de quase provocar inundação e/ou incêndio no meu apartamento, a mensagem do segundo é verdadeiramente uma “grande viagem”. Tenho certeza, por outro lado, de que não foi Alzheimer, o alemão do seu correio eletrônico, mas o entretenimento causado pelo bendito e/ou maldito computador, jamais arte do encardido, isso a depender da crença pessoal. No entanto, por via das dúvidas: “Vade retro, Satanás!
”.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A palavra Amor

Numa tarde de Carnaval, lá pela década de 1990, eu estava sentado nas escadarias da Livraria Santamariense [sic], quando veio falar comigo o poeta e amigo Valter Batista, nosso Doxa, de saudosa memória, com uma camiseta cor de bonina e, na cabeça, um lenço cor de abóbora, com meneios típicos de quem houvera ingerido algumas boas geladinhas – podia-se notar –, que foi direto ao assunto:

— Poeta, eu tava lendo hoje seu livro “Ave Corrente”, de 120 páginas, e contei 120 vezes a palavra “amor”. Isso foi de propósito?

Antes de responder, fiz uma cara de surpresa e lhe disse um lacônico não. Reafirmei, a seguir, que foi apenas coincidência, pois nem sabia disso, todavia fiquei a matutar: “Caramba! O cara parou para contar quantas vezes eu usei a palavra ‘amor’?!”. Pois é, mesmo assim nossa prosa fluiu graciosamente e, ainda que num dia momesco, festivo, o assunto foi poesia. E muita poesia.

Como resposta à subitânea pergunta do querido amigo, dediquei-lhe a pirracenta poesia “A palavra amor”, que está na página 55, do meu livro “Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória”, lançado em 2009, durante as comemorações dos 100 anos de emancipação política da cidade, em cujo evento ele se fez presente, sorridente e participativo como de costume:

Valter Batista (Doxa) e Novais Neto. Foto: Marco Athayde, 2009.
Desculpa-me, Caro Poeta,
Se abusei da palavra Amor.
É que só o Amor me completa
E só sei rimar Amor com Amor.

Não sei versejar em protesto,
Tento fazer versos de Amor.
Por esta razão – e de resto –
Continuarei rimando Amor.

Não pretendo mudar, por hora.
Se cem vezes falei Amor,
Dez vezes, somente agora,
E mais uma vez repito: Amor.

Desculpa-me, Caro Poeta,
Eu respeito sua opinião,
Mas insisto ser esteta:
Falar de Amor sem restrição.




Valter Batista (Doxa) e Novais Neto. Foto: Marco Athayde, 2009.
Depois de alguns anos, a palavra que me deixou muito pensativo, coincidentemente num Carnaval, foi “amigo”. Termo tão carregado de simbologia, impregnado de boas energias, que gostamos de ouvir, principalmente, quando vem com ele sinceridade em ações, quando nos conforta e socorre.

Ainda assim, tão expressivo e belo termo, que tantas vezes nos acaricia o coração, acolhe e abraça, ele também o dilacera, mormente quando vem inesperado, mas verdadeiro, de quem gostaríamos de ouvir algo mais romântico, afetivo. O vocábulo “amigo”, portanto, também delimita espaço, manda ter cautela e faz ainda sutil e silencioso alerta, como se, merencórico, nos sussurrasse ao ouvido incrédulo: “somos amigo, apenas amigos, lembre-se disso”.

Diante desta dura e indubitável constatação de que fui, certa ocasião, ouvinte atento e não desejado, tentei sintetizar nesta trova, isto é, em apenas 28 sílabas poéticas, o “amigo” restritor, impassível, limitativo, que não nos deixa margem a possíveis questionamentos:

Tentei ser entendedor
Do que se passou comigo,
Precisamente no Amor,
Quando escutei: “Meu Amigo”.

Referências:

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Press Color, 2009. p. 55.

Quem sou

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...