Para comemorar meus 45 anos de chegada a Salvador, completados em 1º de agosto deste ano, achei por bem republicar esta crônica aqui no blog, uma vez que a mesma já foi divulgada no jornal on-line do Correio da Bahia, em 29/03/2017, por ocasião do 468º aniversário da cidade, quando, naquele ano de 2017, completei 40 anos de acolhida nesta bela Soterópolis.
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Há muito planejei escrever esta crônica para demonstrar minha gratidão e amor a Salvador, cidade que me adotou por filho. O tempo, no entanto, foi passando indiferente a tudo e a todos, e somente agora, março de 2017, vi inadiável minha promessa, bem próximo de completar, em agosto vindouro, 39 anos de vida soteropolitana. Portanto, tempo suficiente para sentir-me filho de Soterópolis.
Lembro-me, como toda nitidez e emoção, das primeiras imagens da Bahia – como muitos ainda se referem à Capital baiana lá na minha terra natal, minha reverenciada e amada Santa Maria da Vitória –cujas paisagens pueris também permanecem bem vivas em minhas reminiscências.
Era uma segunda-feira, primeiro dia do mês de agosto de 1978, dois dias após o Bahia haver enfrentado o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro daquele ano, 30 de julho, quartas de final, quando o resultado da partida, 1 x 1, classificou o time paulista para a fase seguinte. Douglas fez 1 x 0 para o Bahia e o alviverde Toninho empatou.
Cheguei pela manhã, depois de quase 20 horas de viagem. Naquele tempo, tínhamos que ir até Bom Jesus da Lapa, distante 84 km, para tomar o ônibus que, se não quebrasse, chegaria a Salvador de manhãzinha. Felizmente, tive sorte porque tudo aconteceu como previsto.
Fui direto para a Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, no bairro de Nazaré. Renan, meu primo, que já morava aqui há uns dois anos, apressou-se a mostrar-me a Capital. Levou-me, primeiramente, à Fonte Nova, quando pude ver o palco da batalha de dois dias atrás. Eu havia escutado o jogo pela Rádio Globo porque, à época, minha cidade não dispunha de sinal de tevê.
Depois, mostrou-me a praça do poeta, cantarolando “A Praça Castro Alves é do povo / Como o céu é do avião / [...]”. Na música, inclusive, a criatividade de Caetano Veloso introduziu ao poema “O povo ao poder” o nome do seu autor, uma vez que os versos de Castro Alves dizem o seguinte: “A praça é do povo / Como o céu é do condor [...]”.
Logo após ter-me encantado com tanta coisa bonita, uma imagem continua única: a Baía de Todos os Santos vista do Elevador Lacerda. Para quem nasceu aqui e todos os dias a vê, nem percebe sua grandiosidade. É algo majestoso, encantador, estupidamente deslumbrante. Até hoje revejo aquela paisagem como se tudo tivesse acontecendo no exato momento.
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Elevador Lacerda. 1980. Foto: José Gregório Nepomuceno. |
Morei na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória por mais de seis anos. Lá consolidei velhas amizades e fiz novas. Aprendi a viver em grupo e, sobretudo, labutar com gente, o que é extremamente difícil, mas que tem suas recompensas. Passei por um relacionamento que não deu certo, todavia deixou-me um celestial presente: minha filha Lara, de 21 anos.
Durante estas quase quatro décadas, conquistei muitos amigos. Salvador é uma terra maravilhosa de um povo camaradeiro, irreverente, trabalhador e – nem precisa dizer – extremamente festivo. Muitos até hoje, ex-colegas do Baneb, principalmente, chamam-me tabaréu. Entretanto, jamais percebi neste tratamento qualquer sinal de discriminação ou menosprezo. A verdade é que, também, assumo-me como tal e gosto de sê-lo, não vendo, portanto, nada que me inferiorize. Só sei que, como tabaréu, tenho conquistado admiração e respeito, e isto já me faz muito bem.
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Vista do Banco do Estado da Bahia, década de 1980. |
Dentre tantos e tantos amigos soteropolitanos, Rasta Man é um deles. Aliás, ter o apelido de Rasta por aqui não é guardar anonimato, já que ser um rastafári é algo bem comum entre os afrodescendentes baianos. Este, no entanto, a que me refiro, é minha corrente, cheio de gíria, alegre, comunicativo, sangue bom, definindo-o melhor.
Certa feita, encontrei Rasta a subir a Ladeira da Preguiça como se trouxesse às costas todo o peso do mundo, tal qual o titã Atlas. Embora me tenha dito estar com bastante pressa, não parecia nenhum pouquinho. Parou e, com um sorriso bem maior que a própria boca, cumprimentou-me festivamente:
— Qualé a de mermo, minha cor? Tava mermo querendo te ver. Tem uma pra te contar! Tá ligado, papá, naquele chegado nosso? Tá levando o maior virote da patroa! Opaí, bróder, cumé que pode! Fiquei virado, pai!
— É mesmo, rapaz!
— E num é, não, papá?! Me deixe queto, viu! Depois te conto, nego veio.
A irreverência, o bom humor, a festividade estão estampados nos olhos e nos gestos dos salvadorenses. Porventura, deixam escapar palavrões, a possível conotação chula é diminuída e disfarçada pelo sotaque bonito e manhoso, sempre carregado de poesia.
Isto me faz lembrar, certa vez, quando passava de automóvel perto de um desses muitos campinhos improvisados em gramados de praças, cuja bola chutada por um dos jogadores foi parar na meio pista. Reduzi a velocidade do carro e um garoto a pegou. Lá do meio do campo, veio-me o agradecimento:
— Brigado, pareia! O bróder aí é sangue bom!
Entre tantas e tantas irreverências do povo desta terra, uma é impagável. Eu e meu primo Renan, ainda estudantes da Universidade Federal da Bahia, voltávamos para casa, quando o ônibus em que estávamos, Federação–Praça da Sé, já se aproximando do fim de linha, teve que parar bruscamente.
Muito apressado e sisudo como sempre, Renan achou logo de ficar em pé no corredor, com as mãos soltas, bem próximo da porta de saída. Atrás dele, portou-se um guarda-roupa: um rasta de quase dois metros de altura e corpanzil sarado.
O ônibus arrancou bruscamente e meu primo, desatento, foi atirado para trás, rumando o traseiro no baixo ventre do negão, que exclamou com a boca do tamanho do mundo, arrancando risos de deboche dos passageiros:
— Eta porra, se tivesse dura, tinha quebrado!
Renan, com a cara mais fechada ainda e com o zoião bem arregalado, limitou-se a olhar para trás, sorrir timidamente e sair – de fininho – como se não fosse ele o motivo de incontroláveis gargalhadas naquele transporte coletivo.
E eu? Eu fiquei quietinho, sorrindo pelo canto da boca com medo de Renan se virar contra mim, só porque teria achado graça em algo tão sem graça... para ele, claro!
Salvador (BA), 23 de março de 2017.
Referências:
NOVAIS NETO. Soterópolis, meu amor. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/novais-neto-soteropolis-meu-amor/. Acesso em: 23 ago. 2023.