Normalmente, as turmas desses cursos funcionavam à noite e eram formadas de alunos oriundos da zona rural, também citadinos, trabalhadores braçais, empregadas domésticas, muitos idosos, aposentados ou não, todos com objetivos comuns: aprender a ler, escrever e fazer as quatro operações matemáticas, almejando tirar o título de eleitor e, alguns, seguir nos estudos, uma vez que, certamente, não tiveram oportunidade devido a seus afazeres e/ou mesmo a falta de escolas.
Francisco José era um desses alunos, vindo da roça, já sabia ler e escrever, que aprendeu no Mobral, e pretendia seguir estudando, estava matriculado em uma turma do Supletivo do Primeiro Grau. Estudante interessado e participativo, sentava nas primeiras filas e gozava do privilégio de ser primo do professor de Ciências, Ramon Mattos, que também lecionava nas turmas iniciais do Ginásio da cidade. Ali, ele o fazia por diletantismo e gratuitamente, pelo simples prazer de ajudar.
Em uma das aulas do professor Mattos, muito querido da turma, gostava de brincar com seus alunos, ele falava sobre a composição da matéria, e não se apartava do seu livro predileto, Iniciação Científica – Ciências Físicas e Biológicas, de Marques e Sartori, tinha os três volumes dos autores.
Foto: Novais Neto. Acervo do autor. |
– P’sor, ele é assim, vamos dizer, do tamanho de uma semente de milho alpiste? – quis saber Francisco.
– Oxente, Francisco, é bem menor ainda. Imagine a cabeça de um alfinete. Divida-o em dez partes, por exemplo. Pegue uma destas partes. É difícil, não é? Só com uma lente de aumento daria para ver. Pois bem, a molécula, que é formada de átomos, é algo ainda menor. Não dá pra ver mesmo!
— Mas, home quá! Então essa tal de molécula nem existe. É pura carga d’água só mesmo pra entupir o miolo da gente com tanta bestajada – contestou o incrédulo Francisco.
Molécula da água. Foto: Reprodução / Internet (vide link). |
— Oxente, p’sor, olho nu?! E olho veste roupa?! — para delírio de seus colegas.
— Olho nu, Francisco, é uma maneira de dizer. É quando a gente observa uma coisa sem precisar de auxílio de algum instrumento para aumentar o tamanho dela, assim, por exemplo: uma formiga, por menor que seja, a gente consegue ver, mas se for menor que uma formiga, aí já fica difícil, né. Então, pegamos uma lente de aumento, dessas que os meninos colocam contra a luz do Sol, para acender baga de cigarro, queimar papel, e aí conseguimos ver coisas bem miúdas. O microscópio eletrônico, Francisco, aumenta o tamanho dos objetos milhões de vezes, e aí se pode ver até mesmo um átomo — concluiu enfaticamente o competente mestre.
Francisco acenou positivamente com a cabeça, dando a ver que havia entendido. Se verdadeiramente eles se convenceu disso, não é algo tão certo assim. E o dedicado professor continuou a falar de molécula: molécula para cá, molécula para acolá e Francisco “viajava no mundo da Lua”. Lá pelas tantas, parece que houve um reboliço na cachimônia do pobre aluno e o simplório saiu-se com esta:
– Ô, p’sor, essa tal de molécula é aquele negócio que aleijado bota debaixo do sovaco?
– Claro que não, meu querido primo Francisco! Aquilo é muleta, algo completamente diferente, mas tem uma coisa em comum entre ambas: ela também é constituída por moléculas. Entendeu, meu amado mancebo? — finalizou o mestre, fazendo enorme esforço para conter o riso insistente.
– E eu sei lá, p'sor! Agora foi que disgramou tudo no meu coco, num entendi foi patavina de nada – indignou-se o esforçado Francisco José, que passou doravante a ser chamado de Chico Muleta, por seus colegas e, depois, por toda cidade, mas ele, Francisco José, nem se importava com isso. Sorria apenas!
MARQUES, João Queiroz; SARTORI, José Antônio. Iniciação científica: ciências físicas e biológicas, v. 3, 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.
MOLÉCULA DA ÁGUA. Disponível em: <https://pt-static.z-dn.net/files/de8/638ef361867198285fcf9664419458c3.png>. Acesso em: 12 out. 2022.