Segundo o filólogo Napoleão Mendes de Almeida, lambdacismo é a troca, na pronúncia, do “r” pelo “l”, assim como faz Cebolinha, de Maurício de Sousa. O contrário é o rotacismo, como, por exemplo, em vez de a pessoa dizer Cláudio e Clóvis, ela diz Cráudio e Cróvis.
Explicações à parte, aos sábados, quase sempre estamos lá, na casa dos avós maternos de Lara: Seu Naeth e Dona Dedé. Numa dessas idas, encontramos Seu Naeth afundado num sofá, óculos na ponta do nariz, quase a cair, em frente a uma televisão com o volume nas alturas, rodeado de revistas e jornais amassados que, ao ver a netinha, vai logo exigindo:
– Dê cá a bênção, menina véia.
Ela, toda cheia de dengo, aproxima-se, estira o braço e, timidamente...
– Bença, vô.
– Deus te abençoe, menina véia.
Só que não para por aí. Seu Naeth começa, então, a explorar o pequeno vocabulário da netinha, partindo para uma sessão de “atasanamento”:
– Como é o seu nome, menina véia?
A pequena Lara, no meio da sala, cercada de badulaques e cinco bonecas Barbie, de cores e/ou cabelos diferentes, de procedências e qualidades duvidosas, certamente introduzidas no país através do Paraguai pelos “executivos de fronteira”, não lhe dá a mínima atenção, já que seu mundo de fadas e duendes é muito mais interessante. Mesmo assim, ela responde:
Lara Novais, Naeth Santos, Márcia Gomes e Keully Pêpe. Fotos: Novais Neto, déc. 1990 |
– Num sei, não, vô.
– Como não sabe, menina véia. Uma menina desse tamanho não sabe o nome...
– Num sei, não – repete ela mais uma vez, já a perder a paciência.
Mas ele é insistente. E lá pela quarta ou quinta vez, repete a pergunta:
– Co-mo é seu no-me, me-ni-na véi-a? – falando agora pausadamente.
– Lala Lodligues Santos “de Meu Pai”. E plonto – viu onde foi para o “de Novais”?
É sempre assim: inventa uma palavra, distorce outra, engancha em certas pronúncias e vai construindo o seu dicionário mental. Quantos às bonecas Barbies, os nomes seguiam as vogais do nosso Alfabeto: Zazá, Zezé, Zizi, Zozó e Zuzu. Dessa forma, ficou bem mais fácil memorizar essas letras.
Certa ocasião, quando retornei de Santa Maria da Vitória, trouxe-lhe uma ruma de novidades, principalmente, frutas silvestres como pitomba, cagaita, procopa, grão de galo, bananinha de macaco, e pedi a Márcia, a babá, que lavasse um umbu e lhe desse, para que ela pudesse experimentar. E assim foi feito.
Percebi que Lara gostou da novidade. Pedi novamente a Márcia que lhe oferecesse mais alguns umbus.
– Toma, Lara, umbu – ofertou-lhe a babá, com todo carinho.
– Um bu, não, Márcia. Você me deu tlêis bus. É assim, Márcia: um bu, dois bus, tleis bus – ensina professorinha com a lógica do seu entendimento.
Da mesma forma ela analisa as palavras “um bigo”, “dois bigos”, “três bigos”. “Um berto”, “dois bertos”, “três bertos”... e assim por diante.
No trajeto da escola, no entanto, é que surgem as novidades. Curtir esses momentos é algo único na vida de quem teve o privilégio de ver crescer essas pequeninas criaturas. É formidável sentirmos como elas percebem e procuram entender o mundo dos adultos. O seu mundo é simples, belo. E mágico, sobretudo.
Ao trazer-lhe da pré-escola, certa feita, ela virou-se para mim e disse que iria me contar um segredo. Naturalmente, fiquei atento para ouvir a confissão de Lara. Antes, porém, ela me fez um solene pedido... Aliás, não vou revelar o pedido agora, creio que perderá a graça. Vamos adiante.
Todos nós, é provável, já ouvimos perguntas do tipo: “Você sabe qual é o cúmulo da força?”. “O cúmulo da força é dobrar uma rua e quebrar uma esquina”, responderá o indagador. “E qual é o cúmulo da lentidão?”. “O cúmulo da lentidão é disputar uma corrida sozinho e chegar em segundo lugar”. Desse modo, existem o cúmulo da estupidez; o cúmulo da rapidez; o cúmulo da agonia etc. Mas isso fica para um momento oportuno.
De volta ao segredo, Lara apresenta-me um novo “cúmulo”, o “cúmulo da confidência” ou “cúmulo do segredo”. Isso aconteceu quando ela me pôs no incômodo lugar de algum padre, que não me foi possível identificá-lo, que teria proferido esta frase em que ele nos garante: “Tudo aquilo que me é revelado em confissão, eu sei menos do que aquele que nada soube”. Ela, então, fitou-me os olhos e, de forma cerimoniosa e solene, fez o seu pedido:
– Meu pai, eu vou contar um segredo pro senhor, mas, por favor, meu pai, não conte esse segredo pra ninguém! Nem pra mim. O senhor entendeu? – e Lara confidenciou-me o segredo dos segredos.
Você quer saber qual foi o segredo? Perdoe-me. Sinceramente, eu não me lembro de nada do que me foi dito. Tornei-me, imperativamente, um extemporâneo vigário.
* * *
Agradecimento especial ao colega e amigo Luís Cláudio de Lima Pinto, por lembrar-me que seu nome, vez por outra, é vítima de rotacismo, por isso, avisa: “Olha, meu nome é Cláudio e não Cráudio, viu?!”.
https://www.novaisneto.com/
https://www.facebook.com/novaisnetto
https://www.instagram.com/novaisnetopoeta/
https://www.youtube.com/@novaisneto698/videos