Era uma tarde como tantas outras que ali tenho ficado, sentado, após o almoço. “De bobeira”, diriam alguns. Fazendo o quilo, outros diriam. Não importa. Descansando... Viajando nas imagens de uma praça soteropolitana bem movimentada e histórica.
Este “ali” a que me refiro é a Praça da Inglaterra, no Comércio, em Salvador. Sentado num banco que contorna o monumento da imponente estátua de bronze do tribuno J. J. Seabra, estava eu, bem defronte, em postura iogue. Do meu lado direito, a uns vinte metros, o McDonald’s. Bem mais próximo, também sentado, estava um senhor portando uma pasta 007, lendo um jornal, a caracterizar-se – mesmo sem querer – as “ilustres figuras” que naquelas imediações dão plantão diário, os tão procurados agiotas.
Retratista Lambe-Lambe. Foto: Reprodução / Internet (vide link) |
À propósito desses profissionais de escol, magistrais, em Santa Maria da Vitória havia alguns deles, tais quais Jesuíno, Expedito e Pombinho, estes, também “lambe-lambistas”, e outros retratistas merecem registro como Vá de Tenente, João Fulosoro, Randolfo, Neném, Carlito e Tião de Lita (Tiãozinho Roupa Limpa). Hermes Novais, Zim Bacaiau e Zé de Maria são bem mais recentes. Tive o privilégio de ter meus primeiros retratos feitos provavelmente por um dos três primeiros aqui citados, como também algumas fotos 3 por 4 feitas por profissionais de Salvador.
Novais Neto, Jandira e Nena (Janilza). Acervo pessoal. |
Eis que, da tresloucada multidão, emerge um brotinho de seus presumíveis 15, 16 anos de idade. Uma galeguinha, poderiam qualificar meus conterrâneos santa-marienses. Sarará, diria alguém não adepto a desnecessários eufemismos. Uma loirinha esperta, sim! Confortavelmente merecia tal adjetivo.
A loirinha aproxima-se do fotógrafo, pergunta o que não deu para ouvir, certamente a respeito de preço e prazo de entrega de um retrato 3x4. Indagações de quem, geralmente, pergunta por perguntar e o que quer mesmo é submeter-se a mais um teste de fotogenia, a conciliar necessidade, urgência e preço acessível – a perfeita tríplice fusão.
A jovem então se sentou num desconfortável banquinho de madeira. Tocou os cabelos na tentativa de penteá-los com a ponta dos dedos. Olhou para mim e sorriu despretensiosamente. Se eu estivesse mais próximo dela, pediria para deixar os cabelos como estavam: encaracolados, em desalinho, bonitos, a dispensar o desnecessário pente. Mas não, preferiu atender a seus conceitos de beleza, evidentemente, indispensáveis para ela.
Desse modo, ela tirou um pente de uma bolsa. Meio sem graça, no entanto, com um sorriso doce e sem razão no canto da boca, tentou penteá-los. Deu um caprichada final nos cabelos com ambas as mãos, olhou mais uma vez para este “discreto” assistente, lindamente sorriu e pousou fo-to-gra-fi-ca-men-te.
Enquanto minha observada estava se preparando, o retratista, aliás, o “lambe-lambista”, cheio de intimidades com sua parafernália, fazia mil e uma peripécias com seu equipamento fotográfico sustentado num tripé. Enfiava a cabeça, os braços naquele estranho paletó preto acinzentado que, de tão surrado, perdeu – há muito tempo – a cor original.
Finalmente prontos, conversaram qualquer coisa e sorriram. Ela se esforçou em ficar séria, rosto sereno, não carrancudo. O retratista, por último, ainda mexeu no instrumento fotográfico, voltou a arrumar direitinho a cabeça daquele modelito e disparou, decerto, o tradicional grito de alerta: “olha o passarinho”. Pronto, agora, só restava esperar pelo resultado do clique. E, uma vez mais, a linda menina sorriu, tentou ficar mais à vontade, afinal, dali a pouco constataria que “contra ‘foto’ não há argumento”, veria sua carinha estampada em papel fotográfico.
Outra vez recomeçaram os malabarismos daquele “lambe-lambista”: máquina, emulsão, solventes, reveladores, papel fotográfico, positivo virando negativo, negativo sendo copiado e, por fim, eis o retrato 3 por 4, pronto, inconteste, prova definitiva de que ambos procuraram pelo melhor resultado: a menina e retratista.
Nesse ínterim, ainda aproximou um daqueles garotos de rua, olhou a foto, procurou a top model, sorriu e foi-se embora, enigmaticamente. Pude notar que a loirinha ficou meio apreensiva, mas continuou sentada, impassível. Chegou outro menino, esse vendendo picolé Capelinha, e ela nem lhe deu atenção, estava mesmo era ansiosa para ver seu rostinho jovial.
Ela não se conteve, no entanto, levantou-se (a esta altura os retratos estavam sendo secados com auxílio de uma flanela), pediu para olhá-los, balançou discretamente a cabeça e deixou no ar possivelmente frase do tipo: “É... tão boas”.
Minha jovem modelo ainda teve que esperar até que as fotos fossem recortadas e colocadas num porta-retratos plástico. Enquanto isso, ela abriu novamente a bolsa, pegou uns trocados, pagou, olhou mais uma vez em minha direção e rapidamente misturou-se à multidão da Praça da Inglaterra.
Confesso, sem dúvida alguma, que tive vontade de ver a ambos: ela, de perto, primeiramente, depois as fotos. Fiquei no desejo apenas. Faltou-me decisão ou até uma boa dose de curiosidade a ser posta em prática.
E agora, cronista-bancário, o tempo passou muito célere que nem foi sentido? Já era hora, portanto, de voltar (atrasado) ao trabalho no Banco do Estado da Bahia, o extinto Baneb, e enfrentar as últimas quatro horas daquele dia menos comum, daquela tarde que se fez singular, única, sem dúvida.
Agradecimento:
Agradecimento especial ao conterrâneo e amigo Antônio Washington Simões, a quem quase sempre recorro para refrescar lembranças fugidias referentes a acontecimentos em nossa Santa Maria da Vitória, Bahia, Brasil.
Referências:
FOTO LAMBE-LAMBE OU OITI: ascensão e declínio na Aracaju de outrora. Disponível em: <https://www.ufs.br/conteudo/68462-foto-lambe-lambe-ou-oiti-ascensao-e-declinio-na-aracaju-de-outrora>. Acesso em: 5 ago. 2023.
Referências:
FOTO LAMBE-LAMBE OU OITI: ascensão e declínio na Aracaju de outrora. Disponível em: <https://www.ufs.br/conteudo/68462-foto-lambe-lambe-ou-oiti-ascensao-e-declinio-na-aracaju-de-outrora>. Acesso em: 5 ago. 2023.