sexta-feira, 8 de julho de 2022

Na sala de aula - Os corações da minhoca

Aula de Biologia, mais precisamente, sobre Zoologia. O professor, voz anasalada, falava sobre o aparelho circulatório dos animais inferiores, assunto que – surpreendentemente – acabou por prender a atenção de seus diletos e estudiosos pupilos.

Alunos da quarta série ginasial. Os ex-meninos, rapazelhos compenetrados, vestiam calça cáqui de tergal (normalmente boca de sino) e camisa da mesma cor, com debruns no ombro com quatro divisas indicativas de último ano de ginásio, além de surrados congas sete-vidas na cor azul-marinho, um perigo constante para as pobres narinas.

Alunos da 4ª Série Ginasial do Centro Educacional Santamariense (sic) sentados no
Estaleiro Guarany, Tamarindeiro de Cima, 1974. Acervo: Novais Neto.
Já as ex-meninas, moçoilas naturalmente elegantes e belas (não podiam usar maquiagem), trajavam blusa branca e saia plissada azul, também de tergal, convite a que ventos mais afoitos e desavergonhados alimentassem a fantasia erótica de muitos donzelões. Uma beleza, verdadeiramente!

O mestre, competente, paciência de Jó, comedido, de cativante jeito bonachão, reconhecido e respeitado orador político e também professor de História Geral, descrevia, sem nenhuma pressa, o aparelho circulatório de um anelídeo, a minhoca, animalzinho asqueroso para muitos:

– Bem, minha gente [“rente” é a pronúncia mais aproximada], a minhoca tem um aparelho circulatório ainda primitivo. Ela tem de 2 a 15 pares de coração. Isto é, pode ter 15 aurículas e 15 ventrículos rudimentares distribuídos longitudinalmente no seu corpo cilíndrico.

Minhoca. Foto: Reprodução / Internet (vide referências).
A turma ficou intrigada com aquele monte de corações num animalzinho até nojento que, para muitos, só servia mesmo de isca para pescar piabão, dourado-cachorro, guelete e maria-zoião nas outrora límpidas águas do majestoso Rio Corrente lá pelos meados da década de 1970. E mais nada!

“Pra que tanto coração num troço desse, professor?” Esta certamente era a pergunta que muitos desejavam fazer. Optaram, entretanto, pelo silêncio para ver o desenrolar de tão interessante assunto.

O professor, a perceber interrogações passearem na cachimônia de muitos de seus alunos, antecipou-se e inquiriu a todos num tom claramente ameaçador.

– Não entenderam o que eu disse, não? Têm alguma dúvida? Se tiverem, podem perguntar, agora, porque este assunto eu vou botar na prova. Não se enganem, não! – foi quando um dos alunos decidiu manifestar-se:

– Ô, fessor, se essa tal de minhoca que o senhor tá falando aí tem 15 pares de coração, ela tem, portanto, 30 corações. Neste caso, o bicho homem pode amar 31 vezes. Não pode?

– Não entendi sua conta, meu bichinho, explique-se melhor para a turma – ordenou o lente.

– Segundo os poetas, doutor Leônidas, é o coração que ama. O homem já tem um coração e uma mi-nho-ca – palavra dita sílaba por sílaba com aparente receio e olhos esbugalhados – e continuou:

– Se a gente somar tudo, vai dar 31 corações. O homem então pode amar 31 vezes – e cinicamente esboçou pálido sorriso, logicamente, a esperar por resposta nada boa.

Na sala de aula, repleta, surgiram alguns risinhos esparsos e contidos, aqui, acolá, mãos à boca de algumas recatadas donzelas, à espera de enérgica e contundente repreensão do mestre ao imprudente e despudico aluno. No entanto, o que se ouviu foi um discurso amigável e não repressivo de doutor Leônidas, como o tratávamos, que de alguma forma premiou a criativa imaginação do seu pupilo:

– É, meu bichinho, os poetas estão sempre com a razão. E por falar em poeta, esta divina palavra de origem grega quer dizer: “aquele que faz, cria, compõe”. O mundo, meus filhos, seria muito triste sem a criatividade dos poetas! Você está certíssimo, comandante! – e continuou a aula, sem balbúrdia.

Referências:

MINHOCA (foto). Disponível em: <https://thumbs.dreamstime.com/b/minhoca-no-solo-62115557.jpg>. Acesso em: 19 mar. 2021.

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Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...