Percorrer os caminhos da vida não é fácil. Mesmo para aqueles que por ventura tenham nascido em berço de ouro, paralelamente à existência, andam os percalços, os descaminhos, numa tentativa eterna de testar nossas sensibilidades e improvisações.
A pessoa descrita a seguir é um homem não menos comum. Amigo dos mais leais. Batalhador incansável, dono de extremo senso de humanismo. E, apesar de todos estes atributos, nunca esteve imune aos tropeços existenciais que, inesperada e periodicamente, transpunham-lhe a senda.
Estou falando de Arouca, um ser humano acima de qualquer comparação. Sempre gostou de trabalhar. E um dos seus primeiros afazeres, ainda domésticos, foi ajudar a mãe a raspar patas de caranguejo. Isso lhe rendia alguns níqueis suficientes para beber o refrigerante predileto, Fratelli Vita, assistir a filmes de Mazzaropi, Tarzã, Zorro e Tonto e, ainda assim, economizar uns trocados.
Caranguejo. Foto: Reprodução / Internet (vide Referências). |
Cebolinha. Foto: Reprodução / Internet (vide Referências). |
Sem saber o que fazer para salvar o animal, aconselharam a procurar um rezador de picada de cobra, o que foi feito. O benzilhão preparou um defumador com folhas e ervas trazidas numa surrada e fedorenta capanga, e fez com que a moribunda porca inalasse a fétida fumaça. Não houve jeito, a porquinha “veio a óbito”, como Arouca costuma dizer entre frouxos de riso.
Revoltado, sentindo-se perseguido por destino nefasto, um infortunado, ainda cogitou vender a carne do infeliz suíno, mas não o fez, sua consciência falou bem mais alto, o que lhe é próprio. Por outro lado, foi (mal) aconselhado por amigos a praticar tamanha insanidade sob o argumento de que não havia problema algum. Arouca preferiu, no entanto, seguir os bons ensinamentos de honestidade e respeito dados por seus pais.
Na mesma manhã, contratou os préstimos de suposto “coveiro”, Duka Fubica Véia, para fazer o sepultamento do suíno, que levou o animal em seu carcomido automóvel, dizendo que iria enterrá-lo na praia. Tempos depois, Arouca ficou sabendo que o sepultamento não ocorreu e o que torpe coveiro, pelo contrário, transformou-se em magarefe. Vendeu as carnes da falecida porca, de porta em porta. Ganhou, portanto, duas vezes, o desprezível espertalhão!
Passaram-se os dias de desânimo e amargura. Reanimou-se e, desta feita, pretendeu ser dono de granja. Ele mesmo criava e comercializava as aves. Certo dia, logo cedinho, apareceu uma esperta garotinha e comprou-lhe uma galinha rodhia, viva. Sua criação compunha basicamente dessa raça. Minutos depois, volta a menina trazendo recado da mãe:
— Minha mãe disse que esta galinha tá gripada.
— Tá bem! Então leva esta outra. Tá corada, parece que tá sadia.
Não demorou muito, retorna a garotinha acompanhada da mãe, furiosa e falante.
— Eu não quero mais galinha sua, não, seu moço. Fiquei com nojo. Além do mais você é um desonesto, fica enganando a freguesia, principalmente uma criança.
— A madame exagerou, eu também não sabia que a ave estivesse com gogo.
Alguns dias depois, todas as aves misteriosamente morreram, vítimas, é bem provável, de febre aviária, epizootia que, à época, assolava toda a região onde morava. Assim, nosso “biografado” desistiu de ser dono de granja.
Arouca, ainda mais uma vez, insiste em começar a construir seu próprio futuro. Comprou algumas caixas de isopor usadas e propôs a si mesmo vender geladinho na distante praia de Olivença, em Ilhéus.
Logo que adquiriu as caixas, desavisadamente, lavou algumas delas com álcool para desinfetar. Ele não sabia que a substância iria reagir com o isopor, danificando algumas caixas. As outras que lhe restaram, pintou-as com tinta a óleo, pondo o nome Geladinho Arouca, feito de frutas in natura.
Outra fatalidade estava por vir. Contratou alguns garotos para vender seus produtos, só que, chovendo torrencialmente por vários dias e fazendo muito frio, nada vendeu, fazendo-o retroceder do intento de ser dono de “fábrica de geladinho”.
Nada disso o desanimou, por mais inverídico que pareça. Desta feita, quis ser vendedor de quentinha. Ele mesmo preparava as refeições e as distribuía para a clientela. E, para ganhar da concorrência, resolveu vender fiado com a promessa de os compradores lhe pagar no final de cada mês. Resultado: descapitalizou, porque muitos clientes não cumpriam o prometido, e o “restaurante” não deu certo.
Com o pouco da sobra, comprou um pedaço de terra em São Roque do Paraguaçu, por incentivo de um colega de trabalho, nativo daquelas plagas. Disse que agora seria agricultor ou, mais precisamente, plantador de feijão. Adquiriu, na Casa do Agricultor, no Bairro do Comércio, em Salvador, dez quilos de sementes para cultivo, a cinco reais, e plantou numa bonita, promissora e orvalhada manhã.
Todo dia, no trabalho, ele comentava que sua rocinha estava um ouro. As plantinhas viçosas, florando, prometiam boa colheita. No entanto, faltou chuva, por perseguição do destino, já que o culpava, bem na época em que as plantas mais precisavam do líquido universal.
Isso, porém, não lhe arrefeceu os ânimos. Levantou bem cedo (o que habitualmente não o faz) e foi colher as preciosas vagens da leguminosa num final de semana qualquer. Dos 10 quilos plantados, colheu apenas 5, e o preço do quilo no mercado havia caído pela metade do lhe custou. Que prejuízo!
Que tristeza! Qual nada! Feliz, sorrindo à toa, levou para o trabalho num saco do Supermercado Paes Mendonça o produto do seu suor, fazendo questão de frisar. Fez a maior algazarra. Contou vantagens infindáveis sempre exibindo seu talismã: feijões verdes nas vagens e já debulhados.
Era sexta-feira, e para comemorar a minguada, mas festejada colheita, nada mais justo do que saborear a vitória bebendo algumas geladas cervejinhas. E, assim o fez. Saiu com os colegas para um aconchegante barzinho no Bairro do Comércio, na Cidade Baixa, em Salvador.
Depois de ter arrotado tanto papo, contando tantas lorotas, bebido várias louras geladas, já era hora de tomar o ônibus e levar para casa o mais belo dos troféus: o saquinho de feijão verde cultivado e colhido com tanto esmero e carinho.
Todos no trabalho, no entanto, ficamos comovidos, quando soubemos do trágico fim dos grãozinhos de feijão verde, do mais duro golpe do destino! Arouca, num imperdoável descuido, deixou o saquinho de feijões no banco do ônibus.
Referências:
CARANGUEJO (foto). Disponível em: <https://cdn.folhape.com.br/upload/dn_arquivo/2021/01/caranguejo.jpeg>. Acesso em: 15 ago. 2021.