sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O fim do mundo já passou

Desenhava-se, naquela manhã de tempos idos, mais um rotineiro sábado de feira como muitos outros haviam sido: eu e Hermes, meu irmão, ali na sapataria, à espera de algum brejeiro para consertar, lustrar ou repregar calçados. Ou, ainda, fazer “cubação de terra” e ganhar uma grana extra para gastar nas matinês do Cine União, dos irmãos Rocha, Lolô e Rosi, nos circos comuns, circos de touradas ou nos parques de diversões muito comuns à época.

E “cubação de terra”?! Que troço é esse? Explico: cubação nada mais é senão o cálculo da área de um terreno, roçado ou plantado por trabalhadores rurais, que devem receber remuneração, em moeda corrente, proporcionalmente à quantidade de “tarefas” beneficiadas. Tarefa, por sua vez, é medida de área ainda muito utilizada no interior baiano.

Explicações à parte, os consertos que fazíamos eram bem aceitos e rendiam alguns trocados. Nossos cálculos, todavia, suscitavam descrença, pois a brejeirada não cria muito em nós e, vez por outra, voltava sorrateiramente para ter o aval do nosso pai. Além do mais, se feito por ele, o pagamento se resumia a um “Deus lhe pague”, mas comigo ou meu irmão, via-se no dever de “fazer um agrado”.

Novais Neto, Nélson Neves, Glécia e Tião Sapateiro. 1978
O dia sabático, portanto, transcorria normalmente. Eu já havia feito alguns consertos, repregado umas botinas e me preparava para ir à feira comer queca de Chiquinho Boca Aberta, talvez brevidade de Zelino Jega Véia, ginete, ximango e beber QSuco de groselha, garapa de cana ou a deliciosa gasosa, bebida preparada com bicarbonato de sódio. E e
is que, de supetão e espavoridos, surgem na porta da tenda três senhores. Dois, do meu conhecimento, eram Chico Bate-Pau e Péto, espécie de ajudante da Polícia Militar. O primeiro, primo da minha mãe, e o outro, a tiracolo deles, um velhinho por nome Antão, que também eu o conhecia de vista.

— Tião, Tião, o fim do mundo tá perto. Assunta o que assucedeu cum ovo dessa galinha. Quando vi, fiquei mei descalqueado. Mostra pra ele, Seu Antão — ordenou Chico Bate-Pau.

— Deixa de patacoada, Chico! Cê num tem o que fazer, não? Vai caçar o que fazer. Tá caçoando comigo, Chico? Tá fazendo-se de besta? Mas, xô ver essa geringonça aí, Seu Antão. Decá esse troço aí. Xô ver se num é cadelagem de algum capadócio trampolineiro.

Seu Antão apeou de uma égua descanelada, meio arisca, tirou do embornal uma pequena caixa de remédio amarrada com embira e, desta, com muito cuidado, um ovo envolvido em chumaços de algodão, que passou às mãos do meu pai:

— Taí, Seu Tião, me explique que milagre é esse ou nois tamo é campado. Tá parecendo coisa do fim do mundo, da besta-fera — desafiou o brejeiro.

Eu, que estava ali em pé a curiar tudo, pude ver que no ovo havia umas inscrições com letras invertidas verticalmente
 como se estivesse em frente a um espelho plano. Dentre elas, era possível claramente visualizar esta frase: “roma è sueD”. Confesso que aquilo, sem dúvida alguma, me deixou com a pulga atrás da orelha, porque também não entendi patavina de nada.

Meu pai, sem dar qualquer explicação antecipada, foi logo indagando:

— Seu Antão, o sinhô mora onde? É aqui por perto?

— Moro lá na ponta da rua, dispois da casa de João Fulosoro, dispois do Pingo d’Água, de junto da tapera de Chico Tutano e da capoeira de Zé Carretão. Tem até um pé de pau bem no eitão da casa, um pé de madeira-nova sombroso. Pru que, Seu Tião, ocê quer ir lá ver?

— O sinhô pode me mostrar o ninho dessa galinha, Seu Antão?

— Prefeitamente. Quer ir lá cumigo? Vambora agora, é nesturinha mermo, sem puxa-encoe!

E lá fomos nós. Um pouco à frente, meu pai e Seu Antão, calados. Chico Bate-Pau, Péto e eu, encambados atrás sem entender o porquê de o meu pai querer ver o ninho dessa tal galinha poedeira de ovo mensageiro do fim das eras, do outro mundo.

Quando chegamos à casa do velhinho Antão, como é de costume, ele nos ofereceu um cafezinho em copos esmaltados, que quase me pela a língua. Em seguida, nos levou ao quintal: um terreirinho bem simples, varrido, cercado de varas com casca de ovos nas pontas, algumas galinhas pedrês, um chiqueiro de porcos piaus, 
feito de achas de aroeira, um jirau com cebolinha, coentro e salsa. Em outro jirau, uma casinha com o ninho onde havia encontrado o misterioso ovo junto a outro de indez.

Gravura de pano de prato sem identificação de autoria.
Meu pai olhou direitinho o ninho galináceo, futucou ali, futucou acolá, empurrou páginas de jornais velhos para um canto, entortou a boca para um lado, entortou para o outro, franziu a testa, mirou o firmamento de azul intenso com olhos semicerrados, como a buscar inspiração divina, meneou a cabeça de forma suave e tentou explicar o que — supostamente — teria acontecido:

— Quando a galinha bota o ovo, Seu Antão, ele sai quente e molhado e encostou no jornal, e aí a tinta do jornal passou pro ovo. Eu acho que foi isso. Num entendo muito bem esse negócio de milagre, não, mas eu acho que foi isso que aconteceu. E foi por isso que apareceu no ovo “roma è sueD” em vez de “Deus é amor”, como deve tá
 no jornal. O senhor entendeu, Seu Antão?

Fotomontagem: Novais Neto. 2021.
Seu Antão, pelo visto, pela cara que fez, não se convenceu com as explicações dadas pelo desvendador de mistérios ovículos. Botou novamente — e com muito cuidado — o amuleto na caixinha, tirou uma embira da algibeira, amarrou novamente o pacote e o guardou. Agradeceu, formal e friamente, a meu pai. E nós, sem mais o que fazer, exalamos no mundo sem dá um pio. E ainda a crer em coisas do outro mundo.

Depois de tanto tempo, já que, naquela época, eu beirava doze, treze anos de idade, algumas coisas aconteceram: os bate-paus Chico e Péto viajaram para outra possível biodimensão. Seu Antão, que já era bem velhinho, corpo curvado, certamente não mais está entre os vivos.

E ovo? Do ovo nunca mais ouvi falar. E fim do mundo? O fim do mundo, este nosso mundão velho sem porteira, com se diz por aquelas bandas, que se cria não passar do ano 2000, já passou e muito. E não acabou! Também não se concretizou o assustador (e quase inevitável) Bug do Milênio, pesadelo dos cibernéticos, que ocorreria na meia-noite de 1999 para 2000, quando os computadores de todo o Planeta entrariam em pane. Nada disso aconteceu! Felizmente!

Referência:

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Edição do autor, 2009. 164p., p. 161. (conto revisto).

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Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...