Estava em animado forró em São Félix do Coribe, nossa cidade coirmã, do outro lado do Rio Corrente. Lá, sorvi alguns copos de quentão para esquentar a friorenta noite. Nada em exagero. O pensamento, no entanto, não saía do jogo. É que havia prometido a meu pai assistir à partida com ele, embora soubesse que dificilmente cumpriria meu compromisso, pois nestas ocasiões sempre fico muito ansioso.
Já em casa, tentei, vãmente, conciliar o sono. Até que cochilava um pouco, tinha sonhos — para não dizer pesadelos — e acordava com o futebol no pensamento. Finalmente, começou o jogo. Saí de mansinho do meu quarto e fui para a rua sem que ele percebesse minha escapulida.
Subi a Rua Teixeira de Freitas completamente deserta. Imagina que esta rua em dias normais, às três da madruga, já é bastante parada, naquele momento, então, todo mundo grudado na frente do televisor, não se via uma única alma vivente a zanzar. Tudo era silêncio e vazio.
E lá vou eu rua acima, pelo meio. Nas casas, pelas frestas, viam-se as luzes acesas e algum burburinho. De repente, ouvi a palavra gol. Era gol da Inglaterra. Um ou dois foguetes espocaram, sinal da presença algum gringo inglês ou argentino escondido naquelas bandas ou mesmo brasileiro metido a anglicano.
Continuei minha caminhada, agora, mais nervoso ainda. Àquela hora, corria um ventinho frio bem típico das noites juninas. Finalmente, cheguei a meu destino: a casa de Manelim de Seu Dió do Pote, irmão de Mazim Fotógrafo, na Rua José Leopoldo Lima. Bati com suavidade na porta, porta de vidro que me permitiu ver a televisão ligada. De lá de dentro, uma voz que parecia amedrontada perguntou:
— Quem é?
— Ladrão — retruquei — e escutei a confabulância: “Tio Manoel, num vou abrir, não. Tem um ladrão lá fora”. “Que ladrão que nada, menino mofino, assombrado. Ladrão que é ladrão vai dizer que é ladrão? Acende a luz da área pra ver quem é”.
— Eu já tava imaginando que só podia ser você, Nó, com as suas latumias. Você não me pega mais, não. Vamos, entra, vamos ver o jogo, que tá é bom — convidou-me gentilmente Manelim.
O jogo já encaminhava para o final do primeiro tempo, quando Ronaldinho Gaúcho deu uma bonita arrancada, passou a bola a Rivaldo, que marcou o gol de empate. Aí sim, fiquei mais tranquilo.
No intervalo, meu anfitrião convidou-me a fazer um concentrado chá de erva-cidreira misturado com camomila para acalmar os nervos. E assim foi feito, mas o resultado desejado não veio. Fiquei foi mais nervoso ainda, a infusão parece que teve efeito reverso: o coração disparou, deu-me uma sudorese danada, ou suadeira, para não fugir da minha origem. Ainda assim, tentei suportar quanto pude.
Começa o segundo tempo e, logo no início, ao cobrar falta despretensiosa (ao que pareceu), Ronaldinho Gaúcho, apelidado de Bruxo ou Mago, fez valer sua alcunha ao marcar o segundo (e improvável) gol do Brasil. Pronto! Não havia quem me prendesse na frente daquela televisão. E caí fora, não suportava mais ver o jogo de tanta tensão. Fiz o caminho inverso. Desci a Teixeira de Freitas e a rua continuava dormindo, só um açougue já estava com as portas abertas. Parei, dei uma espiadela e segui minha tortuosa senda, doido para o jogo acabar, melhor dizendo, meu sofrimento.
Cobrança de falta de Ronaldinho que originou o gol. Foto: Reprodução / Internet. |
Comemoração de Ronaldinho e do banco de reservas. Foto: Reprodução / Internet. |
— Que foi, moss? Que é que cê tá fazendo esta hora na rua? Tá perdido que nem eu?
— Que perdido, que nada, Fredão, tô é com medo de ver o jogo.
— Então são dois. Só que dei um azar disgramado, saí tão avexado de casa pra vim pro Corrente Verde me esconder, que acabei esquecendo a peste chave em cima da geladeira. Agora, vou ficar bestando pelas ruas até acabar o diacho desse jogo, porque lá eu num volto mais, não, nem peado.
— Tá bom! Então vamos “medir rua” por aí. Vamos subir a Lavandeira, seguir pela estrada do Derba até o Riacho Seco pra ver se o tempo passa mais depressa — sugeri ao meu parceiro de infortúnio.
E foi o que fizemos. Andamos, andamos, contemplamos os matos todos secos, o que é bem comum no mês de junho, escorraçamos alguns vira-latas que vinham nos morder e seguimos. De vez em quando, ao longe, ouvíamos um “uuuuu”, sinal de algum lance mais dramático do jogo.
Conversamos sobre poesia, sobre a ONG Corrente Verde, Ecologia, futebol, que não havia jeito de sair das nossas cabeças, quando finalmente ouvimos uma explosão de alegria, espocar de foguetes: o Brasil ganhou, só poderia ser! Passos — agora — bem apressados. Queríamos ouvir os comentários, ver os lances e respirar aliviados. “Passamos por mais um adversário”, pensamos nós, cada qual com seus botões, evidentemente.
No caminho de volta, ainda na estrada do Derba, vimos Dema Bodeiro e filhos, eufóricos, a comemorar o feito canarinho. Os irmãos Babão e Finho de Cilerino, felizes da vida, iniciavam sua corrida matinal, e tantas outras pessoas com riso largo estampado no rosto, penduradas nas janelas de suas casas ou nas calçadas, no Bairro da Sambaíba, a festejarem a vitória brasileira, naquela frigidíssima alvorada junina.
Fredão de Zé Dentista tomou o rumo da Rua dos Doidos, onde mora, e eu fui para a casa de meus pais, na Rua Teixeira de Freitas, tomar um café quentinho passado em coador de pano para espantar o frio daquele gelado e feliz alvorecer. E ver os gols da partida, claro. Conversar com meu pai, Tião Sapateiro, aficionado por futebol, principalmente em Copa do Mundo, e admirador mor de Ronaldinho Gaúcho.
Quanto ao mim e Fredão, soma-se à coincidência de padecermos de idêntico “mal”: não aguentar assistir a jogos decisivos do Brasil, outro “mal”, bem mais ameno, que nos aflige, também nos une, porque é o que nos põe do mesmo lado das paixões clubísticas: sermos, desde os anos 1970, torcedores do Fluminense, o Tricolor das Laranjeiras. Somos, portanto, “pós-de-arroz”!
Referências:
COBRANÇA de falta (foto). Disponível em: <https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLiCXpoU5tdxY0TaowtbezTvKfNBrI-u5zTJngjG7D8wolDGZeJ-I1WPFJVtbAY-W8S1oJNb9Nqot3wGJodOWVovRzYIqTzBSrjZSgxnT06A8V7u4-AUWqJASuS9xjAsbykw7E3B0_EvM/s1600/r10+01.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.
COMEMORAÇÃO do gol (foto). Disponível em: <https://i.ytimg.com/vi/7hcFmS1KvRg/mqdefault.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.