Levantei cedo como habitualmente faço. Dei um toque no visual e rumei ao trabalho. Conhecendo um pouco esta Salvador, cidade-verão, inegavelmente, optei por ir de ônibus. É menos desgastante, principalmente, quando se tem pela frente alguns inevitáveis engarrafamentos.
Coletivo cheio. Lá fora, uma chuva fina continuava a castigar a manhã do mês mariano. Muita gente molhada entrava no ônibus e um calor insuportável deixava em cada rosto marcas de suor, de abafamento, agitação, de desconforto.
Estava em pé, porém bem acomodado. Uma estudante pediu-me para segurar um pequeno embrulho que levava, enquanto ela procurava algo em sua bolsa. Reparei em muitos semblantes, diante do previsto engarrafamento na Ladeira do Garcia, sinais de cansaço, angústia, sobretudo ansiedade. Uns mostravam o retrato de noite mal dormida. Outros, ainda sonolentos, ensimesmados. O que em verdade havia de comum em muitas fisionomias era a quase certeza de chegar atrasado aos respectivos compromissos. Estudantes, trabalhadores, todos deixavam transparecer apreensão.
À minha frente, uma escolar folheava, desligada do mundo ao seu redor, uma dessas revistinhas de fotonovelas. Sem necessariamente prestar atenção ao que lia, pude ver, num olhar de soslaio, os títulos dos assuntos que a absorviam tanto: Escolha seu par perfeito e Significado dos sonhos. Confesso que me detive um pouco no primeiro assunto. Pus-me a meditar sobre a temática e... Bem que gostaria – também – de encontrar alguém para nos tornarmos um par ideal, perfeito!
Quanto ao Significado dos sonhos, este me fez lembrar do que houvera sonhado naquela noite. Certamente, ali não diria o que vem a ser sonhar com dejetos humanos. A crendice popular não obstante garante que é sinalização de bonança, de grana extra. É... Bem que não seria nada mal!
Fiquei tão entretido em meus devaneios, nos meus sonho, nem percebendo que o ônibus estava bem mais tranquilo, vazio até. Passou o congestionamento e já era hora de descer na Praça Conde dos Arcos, em frente ao Elevador Lacerda e ao Mercado Modelo, no Bairro do Comércio.
Antes de ir ao Baneb, onde trabalhava, passei no self-service do Supermercado Paes Mendonça, do referido logradouro, para o habitual breakfast, o nosso quebra-jejum. Ainda na fila, com a bandeja nas mãos, percebi que uma belíssima mulher olhava-me insistentemente. Fiquei meio desconfiado, senão desajeitado, fato que não me impediu de olhá-la fixamente, por outro lado.
Foto: Reprodução / Internet (vide site em Referências). |
Sentei-me a umas três fileiras de mesa a sua frente e então pude desfrutar calmamente o esplendor de sua beleza. Uma obra de arte. Sorriso gostoso, olhos grandes, claros, lábios torneados, da cor do carmim, cabelos aloirados, meio ondulados. Belíssima mulher. Sem exagero: estonteante!
Ela continuou, ainda assim, a olhar-me com alguma insistência. Tive vontade de aproximar-me dela, mas não o fiz, nem faria. Estava acompanhada de um senhor de meia idade que poderia ser seu pai. Também, nada impediria, pelo menos para um simples observador como eu, que aquele cavalheiro pudesse ser seu namorado, marido... Ou coisa do gênero.
Reservei-me ao direito (e ao prazer) de contemplá-la. Fiz alguns gestos tímidos e anotei meu telefone num pedaço de guardanapo, fazendo-a perceber que era para pegá-lo, quando passasse por minha mesa. Ao que notei, minha musa entendeu e, afirmativamente, concordou com um discreto meneio de cabeça. Aguardei, então, ansioso, o desenrolar daquele romanesco episódio.
Ao final café, ela levantou-se calmamente e deixou que seu acompanhante adiantasse um pouco, de propósito. Porém, no exato instante em que passava por mim, quando estendeu a mão para pegar o talismã – meu pedaço de guardanapo – num átimo de segundo, aquele senhor olhou para trás e... quanta infelicidade! Ela recolheu rapidamente a mão, sem haver completado seu intento.
Foi um verdadeiro desastre para mim. Correu-me um frio intenso pelo corpo. Olhamo-nos, trocamos acenos e ela se foi. Vacilante, atordoado, incrédulo, permaneci naquela mesa o tempo suficiente para minha “dama de vermelho” eterizar-se na multidão. Desapareceu, sem deixar qualquer sinal pelas labirintosas ruas daquele bairro.
Ainda hoje, além da sua imagem cada vez mais nítida na memória e o registro nesta crônica, como recordação fatídica, guardo o pedaço de papel com meu telefone (que “meus guardados” se encarregaram de escondê-lo) e, mais que isso, a imorredoura vontade de que o tempo, mesmo que não contrarie sua marcha ao Infinito, conceda-me bis àquela lírica manhã, com outro final, sem dúvida.
Voltei lá tantas outras ocasiões. E, na profusão de tantos e tantos rostos conhecidos e desconhecidos, o dela jamais surgiu. E não surgirá, vez que me pareceu turista ou, pior ainda: uma miragem! Portanto, ter de conviver com a hipótese de não mais ver minha diva, chega a ser dramático. Neste caso, melhor seria nem tê-la “conhecido”, porque evitaria a instalação de um onírico mundo a delongar indefinidamente com a realidade, sem a musa daquela tão longínqua manhã.
Para muitos, certo que esta crônica soará como uma atitude puramente masoquista. Entretanto, para este que a escreveu, é um excitante e, ao mesmo tempo, um sedativo exercício de sinceridade e coragem. Afinal, quem de nós não passou (ou passará) por semelhante situação? Quem estará livre? Quem, certamente, tão leigo quanto a mim em futurologia, não poderá admitir a hipótese de rever a musa de alguma manhã perdida no tempo? Ou criá-la, talvez?
Assim, aquela que para os mais românticos (talvez piegas) poderia ser chamada “alma gêmea” e mudar o rumo da (minha) história ficará, doravante, como lembrança de uma manhã dentre tantas outras manhãs que hão de vir, por certo. Sem ela... Infelizmente!
Referências:
MONTE JÚNIOR, Walter Cândido do. 30 anos e uma memória sobre as lutas de classe: a mobilização dos trabalhadores no comércio da Cidade do
Salvador, 1987. Disponível em: <https://www.comerciariossalvador.com.br/30-anos-e-uma-memoria-sobre-as-lutas-de-classe-a-mobilizacao-dos-trabalhadores-no-comercio-da-cidade-do-salvador-1987/>.
Acesso em: 31 jul. 2021.