sábado, 14 de novembro de 2020

Quantas unidades vale uma cacetada?

Contagem é algo relativamente simples, mas quando ela não quantifica, esclarece ou complica? É com este assunto que esta crônica tenta brincar. Confiram e divirtam-se também.

Há unidades de contagem em  nosso linguajar cotidiano que, só para dar continuidade a um bom bate-papo, a gente finge que entende, o outro finge que é entendido, entretanto, não quantificamos patavina alguma. E sequer nos damos conta disso. E a conversa segue em frente.

Em pelo menos três episódios, deparei-me com situações similares. Uma delas aconteceu quando em visita a minha terra natal, Santa Maria da Vitória, com minha filha Lara, de dez anos de idade.

Lá, fomos à feira e para ela comprei algumas cagaitas, fruta suculenta típica do cerrado brasileiro, que pode ser consumida in natura ou em forma de geleias, sucos, licores, doces e sorvetes. Frutinha muito apreciada pela meninada — e por adultos também — e que ela gostou muito, a confirmar a regra.

Cagaiteira e suas frutas. Brasília (DF). Fotos: J. Álvares, 2020.
De volta para casa, ela encontrou-se com uma amiguinha e, antes de oferecer-lhe algumas cagaitas, perguntou-me:

— Painho, eu dou quantas pra ela?

— Dá umas cinco, minha filha — respondi mecanicamente.

— Painho, fala direito, eu não sei quanto é umas cinco, não. Fala quantas.

Fiquei atônito ante aquela indagação inesperada e pensei cá com meus botões: “tô encalacrado, e agora, como vou me sair dessa?”. Refleti rapidamente: 
se são umas cinco, deve ser o número cinco, pelo menos, mais de uma vez, ou seja, múltiplos de cinco: 10, 15, 20, daí por diante, e lhe respondi:

— Dê dez pra ela, minha filha.

Disse isso sem muita convicção. Afinal, é de bom alvitre lembrar que este assunto não é da minha competência, mas eu teria que sair daquela enrascada, portanto, os matemáticos agora que fiquem com a palavra. Solucionem-me o enigma matemático-gramatical. 

Em outro momento, ao levar uma conversa muito interessante com alguém, resolvi falar de poesia, porque é um assunto que sabidamente gosta, visto ser professora de Língua Portuguesa e Literatura. E então perguntei-lhe, por provocação e também para dar motivo a declamar um poema meu, por título Eta Língua Portuguesa:

— Você sabe como é que se escreve a conjunção “por isso”? Escreve junto ou separado?

— Separado, é claro. Cê tá de brincadeira comigo, né?

— E “portanto”, como é que se escreve?

— Separado também, meu filhinho amado.

— Não acredito! Se-pa-ra-do! Então me dê um exemplo, por favor — desafiei-a.

— Agora mesmo: comprei uma calcinha por tanto. Taí o exemplo, sem pensar muito. Ficou satisfeito? — concluiu com um riso debochado. Debochado não, gozador mesmo.

E não é que ela tem razão? Este é mais um valor ou unidade que não quantifica e a gente finge que entende. Por conta disso, nossos humoristas costumam repetir a enigmática frase: “Comprei não sei o quê, não sei onde e paguei não sei quanto”.

É provável que devam existir tantos e tantos exemplos parecidos em nossa “benquista Filha do Lácio”, repetidos por todos nós, cotidianamente, sem nos dar conta das inimagináveis e belas criações dos falantes brasileiros da nossa admirável e riquíssima Língua Portuguesa.

De volta às “unidades de contagem que não quantificam”, lembro-me de uma visita que fiz à agência do extinto Baneb, em Santo Antônio de Jesus, Bahia, quando ainda era bancário, e um colega contou-me um chistoso acontecimento.

Aproximavam as festividades de fim de ano e o gerente da agência, pretendendo fazer uma confraternização entre colegas e clientes do banco, pediu ao contínuo que comprasse, dentre outras coisas, um saco de limão para fazer suco e servir no preparo de alimentos.

O contínuo, como era chamado o funcionário “faz-tudo” da agência, diligentemente foi fazer as compras. Não faz mal lembrar que “contínuo” daquela época é, nos dias de atuais, o empregado que tem o pomposo e alienígena nome de office boy, que nem chega aos pés daquele. Nem de longe! 

De volta das compras, ele teria que prestar conta. E foi o que fez. Entregou ao gerente as notas fiscais de alguns produtos e, do saco de limões, teria que separar em dúzias e fazer um documento contábil, uma vez que os comprou em feira livre e não havia como contar aquela ruma de frutas.

Começou a contagem na maior malemolência. Era sexta-feira, expediente já extrapolado, e ele, com uma vontade inadiável de sorver algumas “geladinhas”, contava às pressas e com raiva os tais limões. Quanto mais os contava, impressionava-se com o milagre da multiplicação. Enervou-se e não teve dúvida, datilografou com uma carcomida máquina Reminghton, de fita ilegível, no voucher, o “inequívoco” histórico: “Valor referente a uma cacetada de limões, conforme autorização da Gerência”.

E lá foi ele bebericar nos bares da cidade com a consciência tranquila de haver ganhado mais um dia, honestamente. Sem qualquer dúvida. E sem pensar no “cítrico histórico”.

Em tempo: Crônica, agora revista, publicada no Jornal Comércio Hoje, de Santa Maria da Vitória (Ano II, Nº 10, Novembro/Dezembro/2007, p. 4) que saiu com erro no título, senão vejam:


7 comentários:

  1. Rindo muito....
    Tudo é tão familiar....
    Tudo tão fácil de te ler....
    Tudo tão difícil para te elogiar....

    Nilzinha

    ResponderExcluir
  2. O Contínuo que trabalhei em 1985, Pardal, no Deseg, era exatamente o que você descreveu. Acho que ele saberia a resposta...
    Muito boa. Obrigado por me levar de volta ao Baneb...

    ResponderExcluir
  3. Parabéns meu amigo, sempre gratificante ler suas crônicas, abraço.

    ResponderExcluir
  4. As vezes as nossas crianças nos deixa sem palavras..Gosto muito de ler as suas estórias, ou histórias, são fascinantes. Fica com Deus. Luciano Diniz.

    ResponderExcluir

Quem sou

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...