sábado, 28 de novembro de 2020

Um casamento bossa nova

O casamento foi tradicional, mas os acontecimentos dentro daquela pequena igreja escaparam da normalidade. Confiram e divirtam-se.

Tinha tudo para ser um casamento na mais pura tradição católica. Dentro dos conformes, mais precisamente. Os ingredientes não faltavam. Os preparativos também não. Enfim, até mesmo os convidados compunham-se da mais fina flor das 
societies santa-mariense e são-felense.

Desculpem-me pela insistência, mas aquele enlace não oferecia qualquer vestígio para escapar à normalidade, não fossem as presenças de duas figuras “opostas pelo vértice”, em se tratando de conduta. Porém, bem próximas num gosto: ambas saboreiam com singularidade a nossa conhecida cervejinha. Refiro-me às presenças de um bêbado e um vigário em um casamento. 

Ao chegar à Igreja Matriz de São Francisco de Assis, lá pelos idos de 1990, em São Félix do Coribe, jovem e progressista município baiano, às 10h30, a pressupor que estivesse bem atrasado, vez que a cerimônia estava marcada para 10 horas. Mas, não. Para sorte minha, havia — como eu — muita gente não britânica que também fez o mesmo. Dentre essa gente, estava justamente os protagonistas daquele esperado acontecimento: os nubentes Weima e Dilson.

Na igrejinha, modesta, arrumada com extremo bom gosto, ainda faltavam flores e fitas brancas que deveriam ficar em toda a extensão do corredor formado pelos bancos e neles afixadas. Entre os convidados estava eu. Não que pertencesse à fina-flor, mas por ser amigo da noiva. E fui eu, justamente o escolhido para providenciar uma tal fita adesiva para afixar as flores nos bancos. Não consegui. Também — a confessar a verdade — enrolei um pouco e outra pessoa o fez mais rapidamente.

Por fim, tudo estava pronto. E no capricho. Entramos na capela, acomodamo-nos e ficamos por ali à espera do padre, ansiosos. Não demorou muito e apareceu o jovem e risonho vigário José Domingos ou simplesmente Zé Domingos (de saudosa memória), como era tratado de modo informal.

O discípulo de Jesus, sempre a sorrir, cumprimentou a todos e, antes de dar início à solenidade matrimonial propriamente dita, lá do fundo da Igreja, na última fileira de bancos, quase escondido, alguém quis fazer-se notado, e disse alto e bom som:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

— Para sempre seja louvado — responderam alguns gatos pingados a esboçar sorriso.

Era Ninho, figura conhecidíssima, mais ou menos grogue certamente após haver ingerido algumas doses da famosa aguardente bananinha de Correntina ou daquela amarelinha, fermentada em cocho de umburana, de Coribe. Ou, sabe se lá, da boa pinga do Brejão, de Santa Maria, ou até mesmo algumas cervejinhas, não importa. Ninho fez-se notado, e isso é o que interessa. 

Susto, indignação, surpresa, foi o que se viu nos semblantes dos presentes. Porém, o que nos deu mesmo foi uma incontrolável vontade de sorrir, principalmente porque o ambiente não permitia (é sempre assim!) e tivemos que a sufocar os teimosos risos a qualquer custo, o que foi feito a duras penas.

Olhei para o padre e observei, bem no canto da boca, torta para um lado, um sorriso maroto, contido. Mesmo assim, continuou bem sereno, sem ser sisudo, como se nada daquilo tivesse importância alguma. Detidamente, olhou-me. Balançou suave e discretamente a cabeça como a exclamar consigo mesmo:

— Mas como é que pode uma coisa dessa?!

A solenidade, sem demora, teve início de forma convencional: Zé Domingos, o sacerdote, começou a falar sobre o casamento e — repentinamente — mudou de ideia para assombro dos presentes.

— Bem, como poderia eu falar sobre conúbio, sobre matrimônio, se o que sei se limita ao que tenho lido nas Escrituras Sagradas? Ao que tenho estudado em livros que tratam do assunto? Não. Não me parece uma atitude sábia teorizar sobre o casamento se estou entre pessoas que sabem muito, mas muto mais do que eu. E o sabem por experiência própria, por experiências diuturnas!

Neste momento, o discípulo de Cristo escolheu dentre os presentes dois casais: um mais velho, mais experiente, e outro mais novo, além dos pais da noiva e do pai do noivo, já que a mãe dele não estava presente, convidando-os a contarem suas experiências conjugais.

O primeiro casal, pais da nubente Weima, o ex-policial militar Magalhães e Mazinha, deu seu depoimento. Zezé Escorrega e Mena de Belaísio Cruz falaram da experiência de meia dúzia de anos de vida a dois, quando Zezé, que não desgruda de um radinho de pilhas para escutar os jogos do seu glorioso Botafogo, valeu-se de gírias antigas (ou cafonas, sendo coerente) para arrematar seu pensamento sem escorregar em palavras ditas bem pausadamente, na maior malemolência:

— Casamento é isso aí, meu chapa! Morou?

“Moramos sim, Zezé”, pensei cá comigo. E àquela altura, o evento nem parecia uma cerimônia religiosa. Estava na maior descontração, movido por um sem-fim de papos triviais, momento em que o senhor vigário, bem sério, virou-se para nós e disse:

— Agora é comigo, meus amigos. Enquanto levo um papo com os noivos, vocês aí da galera podem conversar um pouco. Fiquem à vontade! Mas sem algazarra 
— advertiu.

Mais uma vez aquele senhor surpreendeu a todos ao simplesmente sentar-se num dos degraus do altar, de frente para nós. Já os noivos acomodaram-se em duas cadeiras logo à sua frente.

Terminado aquilo que poderia ser chamado sermão ou simplesmente conselhos, levantaram-se os noivos, levantou-se o padre, que nos falou brevemente sobre o matrimônio, e deu início à consumação do fato — a esperada troca de alianças. E consequentemente o ósculo, é óbvio. 

Novamente Ninho, lá do fundo da igreja, veio dar sua contribuição, talvez por ter percebido que o fotógrafo, Seu Neném, deixara passar um ótimo flagrante, não tendo registrado o singularíssimo momento em que o padre se sentou nos degraus do altar.

No exato instante da troca das alianças, Ninho caprichou no “português ao alcance de todos”, precavendo-se de algum vacilo do fotógrafo: 

Troca de alianças. Foto: Acervo do casal.
— É agora, Neném. É agora, Neném. Pau, Neném! Pau, Neném! Pau! Pau! Pau!

E insistiu...

— De novo, Neném. Pau! Pau! Pau!

Nada mais havia de sério daí para frente. Todos, inclusive o vigário, rimos à beça. E Ninho virou motivo da festa!

Por fim, dados os oportunos cumprimentos, feitas as indispensáveis fotos, assinado o livro de registro, dirigimo-nos para a casa dos pais da noiva, do outro lado do Rio Corrente, em Santa Maria da Vitória, no bairro do Malvão.

Para lá também foi o padre Zé Domingos, lambadeiro, que, como bom sujeito, sabe saborear uma “loira gelada”. Dançar lambada, febre da época, forró, rock e o que rolasse, com toda simplicidade clerical. Sem o exagero que algum ritmo pudesse sugerir, claro.

Prosamos bastante. Falamos sobre coisas sérias e banalidades. E, vez ou outra, era interrompido por alguma dama convidando-o para “dar-lhe o prazer de uma página musical”. Outras vezes, por políticos que se confessavam surpresos, maravilhados e interessados em trazê-lo para Santa Maria, uma vez que o vigário alimentava pretensões políticas em São Félix do Coribe, o que não se concretizou.

Com muita simplicidade e “jogo de cintura”, o jovem e bom vigário conduzia o papo de modo a agradar gregos e troianos, sem se comprometer com absolutamente nada. Apenas ouvia e agradecia a todos.

Saí da casa dos pais da noiva lá pelas cinco horas da tarde, deixando para trás o sacerdote, ainda bebericando umas cervejinhas geladas, petiscando doces e salgadinhos e... Dançando! Dançando! Dançando! Diga-se de passagem, o que também fazia com boa ginga, singeleza e autocontrole.

Novais Neto assinando como testemunha, observado pelo Pe. José Domingos. Foto: Acervo do casal.
Familiares e do casal Weima e Dilson. Foto: Acervo do casal.

Belaísio assinando como testemunha, tendo atrás de si a filha Idailde. Foto: Acervo do casal.

sábado, 21 de novembro de 2020

Gramática Romanesca (nova declamação)

Poesia Gramática Romanesca em nova declamação com gravação feita com celular por Joselito Gomes. Confiram.

Neste poema, utilizo termos da Gramática Portuguesa para contar uma história de amor, em uma homenagem à minha ex-professora Arturzita Santana. Poesia extraída do meu livro Ave Corrente.
 


GRAMÁTICA ROMANESCA

Foi na Análise Gramatical Normativa
que encontrei uma forma original
e também Afirmativa
de definir nosso Romance.
Quando um dia te encontrei,
eu era um Sujeito Simples
sem qualquer Predicado.

Tu me rezaste a Oração Principal,
me atribuíste Adjetivos em Metáforas
que, apesar da tua Voz Ativa,
foste suave como a Partícula Expletiva.
Renasci para vida de Modo Imperativo
que me levantou o moral.
Descobri – até! – que Amar
é Verbo Transitivo Direto
e não um Complemento Nominal.

Entendi e gostei do Pleonasmo
nos elogios que me fizeste,
mas não perdi a Condição Singular
de continuar um Sujeito Oculto
do teu mundo Pretérito
de amores Indefinidos e Plurais.

(NOVAIS NETO. Gramática romanesca. 2. ed. Salvador: NN, 1990, p. 52. 120p.)

sábado, 14 de novembro de 2020

Quantas unidades vale uma cacetada?

Contagem é algo relativamente simples, mas quando ela não quantifica, esclarece ou complica? É com este assunto que esta crônica tenta brincar. Confiram e divirtam-se também.

Há unidades de contagem em  nosso linguajar cotidiano que, só para dar continuidade a um bom bate-papo, a gente finge que entende, o outro finge que é entendido, entretanto, não quantificamos patavina alguma. E sequer nos damos conta disso. E a conversa segue em frente.

Em pelo menos três episódios, deparei-me com situações similares. Uma delas aconteceu quando em visita a minha terra natal, Santa Maria da Vitória, com minha filha Lara, de dez anos de idade.

Lá, fomos à feira e para ela comprei algumas cagaitas, fruta suculenta típica do cerrado brasileiro, que pode ser consumida in natura ou em forma de geleias, sucos, licores, doces e sorvetes. Frutinha muito apreciada pela meninada — e por adultos também — e que ela gostou muito, a confirmar a regra.

Cagaiteira e suas frutas. Brasília (DF). Fotos: J. Álvares, 2020.
De volta para casa, ela encontrou-se com uma amiguinha e, antes de oferecer-lhe algumas cagaitas, perguntou-me:

— Painho, eu dou quantas pra ela?

— Dá umas cinco, minha filha — respondi mecanicamente.

— Painho, fala direito, eu não sei quanto é umas cinco, não. Fala quantas.

Fiquei atônito ante aquela indagação inesperada e pensei cá com meus botões: “tô encalacrado, e agora, como vou me sair dessa?”. Refleti rapidamente: 
se são umas cinco, deve ser o número cinco, pelo menos, mais de uma vez, ou seja, múltiplos de cinco: 10, 15, 20, daí por diante, e lhe respondi:

— Dê dez pra ela, minha filha.

Disse isso sem muita convicção. Afinal, é de bom alvitre lembrar que este assunto não é da minha competência, mas eu teria que sair daquela enrascada, portanto, os matemáticos agora que fiquem com a palavra. Solucionem-me o enigma matemático-gramatical. 

Em outro momento, ao levar uma conversa muito interessante com alguém, resolvi falar de poesia, porque é um assunto que sabidamente gosta, visto ser professora de Língua Portuguesa e Literatura. E então perguntei-lhe, por provocação e também para dar motivo a declamar um poema meu, por título Eta Língua Portuguesa:

— Você sabe como é que se escreve a conjunção “por isso”? Escreve junto ou separado?

— Separado, é claro. Cê tá de brincadeira comigo, né?

— E “portanto”, como é que se escreve?

— Separado também, meu filhinho amado.

— Não acredito! Se-pa-ra-do! Então me dê um exemplo, por favor — desafiei-a.

— Agora mesmo: comprei uma calcinha por tanto. Taí o exemplo, sem pensar muito. Ficou satisfeito? — concluiu com um riso debochado. Debochado não, gozador mesmo.

E não é que ela tem razão? Este é mais um valor ou unidade que não quantifica e a gente finge que entende. Por conta disso, nossos humoristas costumam repetir a enigmática frase: “Comprei não sei o quê, não sei onde e paguei não sei quanto”.

É provável que devam existir tantos e tantos exemplos parecidos em nossa “benquista Filha do Lácio”, repetidos por todos nós, cotidianamente, sem nos dar conta das inimagináveis e belas criações dos falantes brasileiros da nossa admirável e riquíssima Língua Portuguesa.

De volta às “unidades de contagem que não quantificam”, lembro-me de uma visita que fiz à agência do extinto Baneb, em Santo Antônio de Jesus, Bahia, quando ainda era bancário, e um colega contou-me um chistoso acontecimento.

Aproximavam as festividades de fim de ano e o gerente da agência, pretendendo fazer uma confraternização entre colegas e clientes do banco, pediu ao contínuo que comprasse, dentre outras coisas, um saco de limão para fazer suco e servir no preparo de alimentos.

O contínuo, como era chamado o funcionário “faz-tudo” da agência, diligentemente foi fazer as compras. Não faz mal lembrar que “contínuo” daquela época é, nos dias de atuais, o empregado que tem o pomposo e alienígena nome de office boy, que nem chega aos pés daquele. Nem de longe! 

De volta das compras, ele teria que prestar conta. E foi o que fez. Entregou ao gerente as notas fiscais de alguns produtos e, do saco de limões, teria que separar em dúzias e fazer um documento contábil, uma vez que os comprou em feira livre e não havia como contar aquela ruma de frutas.

Começou a contagem na maior malemolência. Era sexta-feira, expediente já extrapolado, e ele, com uma vontade inadiável de sorver algumas “geladinhas”, contava às pressas e com raiva os tais limões. Quanto mais os contava, impressionava-se com o milagre da multiplicação. Enervou-se e não teve dúvida, datilografou com uma carcomida máquina Reminghton, de fita ilegível, no voucher, o “inequívoco” histórico: “Valor referente a uma cacetada de limões, conforme autorização da Gerência”.

E lá foi ele bebericar nos bares da cidade com a consciência tranquila de haver ganhado mais um dia, honestamente. Sem qualquer dúvida. E sem pensar no “cítrico histórico”.

Em tempo: Crônica, agora revista, publicada no Jornal Comércio Hoje, de Santa Maria da Vitória (Ano II, Nº 10, Novembro/Dezembro/2007, p. 4) que saiu com erro no título, senão vejam:


Quem sou

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...