Hoje, Dia dos Pais, permitam-me lembrar do meu pai, que recentemente partiu, relembrar uma de suas raras paixões, a Loteca, como também seu jeito único de analisar cada jogo.
Volantes antigos, cartão perfurado e volante atual. Vide Referências. |
Essa esperança anunciada pelo presidente da época, Artur da Costa e Silva (15/3/1967–31/8/1996), como a hora de o “povo fica rico”, não tardou a chegar a Santa Maria da Vitória, não necessariamente lá, mas em Bom Jesus da Lapa, cidade mais próxima. Como o primeiro concurso ocorreu em abril de 1970 e me recordo de ver meu pai marcando seus palpites em volantes em torno do número 30, e que os jogos aconteciam nos finais de semana, deduzo que a Loteca deve ter começado a levar sorte aos santa-marienses ainda naquele mesmo ano, época de Copa do Mundo, ano do Tri.
Um dos primeiros divulgadores da Loteca em Santa Maria, até onde me recordo, foi Quinquinha de Milu, que o perdeu para o jogo de prognósticos, visto tornar-se Quinquinha da Loteria. Posteriormente, veio o mais conhecido deles, o cambista Nanu, que percorria toda a cidade a pé para vender seu famoso e tradicional “bolão da esportiva”, dentre outras loterias. Para ele, Nanu, também lhes aditaram o “sobrenome” Loteria a seu apelido, que virou também Nanu da Loteria.
Naquele tempo, os volantes marcados eram levados a Bom Jesus da Lapa para serem perfurados, melhor dizendo, registrados. O valor mínimo da aposta era de um cruzeiro novo — NCr$ (aprox. sete reais), no entanto o apostador pagava dois cruzeiros novos, para custear as despesas de viagem de Quinquinha até Lapa do Bom Jesus, o que acontecia nas tardes de quarta-feira.
Quadro elaborado por Novais Neto. 2020. Fonte: Wikipédia. |
A Loteria Esportiva, que teve seu último concurso em 4/9/1989, no formato tradicional, o dos 13 pontos, passou por inúmeras modificações. Sobrevivente que foi da CPI dos Anões do Orçamento, episódio que envolveu mais de 30 parlamentares, a Loteca continua a alimentar sonhos de riqueza, sem o glamour de outrora, evidentemente. O último concurso, o de número 893, ocorreu em 16/3/2020. Seu inequívoco legado, no entanto, é mesmo o da imprevisível Zebrinha, que realizou muitos sonhos de tornar-se milionário da noite para o dia. Por outro lado, ela também frustrou outros tantos sonhos.
Quanto a meu pai, Tião Sapateiro, este era apaixonado por esta modalidade de jogo de azar (ou de sorte). Era jogador na acepção precisa do termo. Ele não torcia para qualquer time, apenas marcava o que considerava lógico, depois de noites de estudo no tradicional “O Curingão no Esporte”, informativo que elencava os últimos jogos de cada equipe para orientar o apostador. Escutava também os palpites de especialistas, como os do matemático Oswald Souza ou comentaristas esportivos da Super Rádio Tupy. Ganhou uma ou duas vezes, bem pouco, quando os resultados atendiam à lógica futebolística.
O Coringão no Futebol (vide Referências) e Tião marcando cartela. Foto: Novais Neto. 1982. |
Alguns times, entretanto, deixavam-no com a “pulga atrás da orelha”. Um deles era o Flamengo, não porque fosse contra o rubro-negro. Não, não era bem isso. É que meu pai dizia que o Flamengo “só entrava na loteria pra lhe tirar da jogada”. Quando marcava nele, ele perdia; quando marcava no outro, ele ganhava o jogo. Só teria chance de acertar o ponto se gastasse um palpite triplo.
Descontraído mesmo era vê-lo discutir resultados de jogos com seu amigo de infância, Zé Braga, que ele o tratava por Zezinho, torcedor apaixonado do Corinthians. Por várias vezes, eu os vi nesses embates de palpites, como aconteceu num jogo entre Fortaleza e Corinthians realizado na capital cearense:
— Furtaleza e Curíntia. Quem você acha que ganha, Zezinho? — perguntou meu pai numa evidente provocação.
— Curíntia, já cravei seco – e continuava a discutir os demais jogos e ainda argumentava favoravelmente quanto ao palpite do amigo, mas logo em seguida mudava de ideia:
— É! O Curíntia não vai sair de São Paulo, viajar quase dois mil quilômetros pra perder pro Furtaleza. O Furtaleza também não vai querer fazer feio em casa diante de sua torcida. Esse jogo... num sei, não, viu, Zezinho, tá cheirando mesmo é um empate. O quê que você acha?
— Que empate que nada, Tiãozim, vai dá é Curingão na cabeça. E você ainda tem dúvida, moço?
— Tenho, sim. Tô achando que esse Furtaleza vai endurecer jogo, vai querer fazer bonito, mostrar que é bom de bola também. Eu tô achando que vai dá é Furtaleza na cabeça. Tá é com cara de Furtaleza!
— Cê vai é perder seu ponto, isso sim – e encerravam por hora o lotérico bate-papo.
Na segunda-feira, logo de manhã bem cedo, ainda mais se o Corinthians tenha saído vencedor, lá estava Zé Braga na porta da tenda do filho de Adnyl de Celina, ou seja, Tião Sapateiro:
— E aí, Tiãozim, fez quantos pontos?
— Só fiz 10. E você?
— Também fiz 10. Mas cê perdeu o ponto do Curíntia, num perdeu?
— Perdi nada, Zezinho, botei foi um triplo por garantia — e aí já começavam a discutir os jogos do próximo fim de semana. E assim, a vida de jogadores da Loteca seguia, tranquilamente, sem nenhuma pressa, a acompanhar a rotina de cidadezinha do interior.
Quanto a mim, não era muito diferente assim. Se o Tricolor Carioca estivesse em algum jogo, ele logo perguntava meu palpite, tendencioso, ele sabia. Dizia que eu era puxa-saco do Fluminense:
— O Fluminense vai pegar o Moto Clube lá no Rio. Cumé que tá ele? Será que ele ganha?
Na condição de torcedor ou puxa-saco, segundo ele, fazia minha análise naturalmente passional e lhe afirmava que o tricolor ganharia. Ele também não me contradizia. E me perguntava sobre outros times, se eu sabia como andavam. Eu dava lá meus palpites e ficávamos ali conversando. Eventualmente, diante de uma derrota do Tricolor, considerada imprevista, desacorçoado, eu lhe questionava:
— E aí, perdeu o ponto do Fluminense, num foi? Que zebra disgramada foi aquela!
A Zebrinha (vide Referências). |
Na linguagem dos amantes da Esportiva, “duque aberto” é o prognóstico duplo no qual o apostador marca dois resultados no mesmo jogo, nesse caso especial, assinalam vitória dos dois times, colunas 1 e 2, por isso chamam de aberto. Deixam de marcar a coluna do meio, indicativa de empate.
Futebol sempre foi a alegria do meu pai, gostava de ver qualquer jogo pela televisão, por isso resolvi trazê-lo a Salvador para assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2014. Naquele ano, ele já havia sofrido um AVC isquêmico, que lhe afetou o lado direito do corpo, mas a mente continuou bem ativa, aparentemente, sem sequela.
Embora não alimentasse paixão clubística, torcia pela Seleção Brasileira e tinha notória admiração por Garrincha, Rivelino e Ronaldo Fenômeno. Discretamente, vibrava quando o Fluminense vencia e dizia para minha mãe que era “pra Novais num ficar triste”. No entanto, numa eventual derrota, dizia a ela que eu “estava urrando em Salvador”, ou com “os dentes no quarador”, em caso de vitória, o que quase sempre virava motivo para minha mãe telefonar e contar-me a fuxicaiada do jogo, como diz ela.
Num particular, notadamente em Copas, sempre o via torcer ardorosamente pela Seleção do Japão, o que me aguçou a curiosidade e lhe perguntei, certa vez:
— Porque o senhor torce tanto pelo Japão? Virou japonês, foi?
— Quando fui para São Paulo, nos anos 1950, trabalhei numa sapataria de uns japoneses, que ficaram meus amigos. Todo fim de semana, eles me levavam para suas casas e, pela primeira vez na vida, eu vi comemorar meu aniversário. É um povo muito bom, gosto muito, honesto, humilde e inteligente.
Tião Sapateiro entre seus amigos em São Paulo. Década de 1950. |
Meu pai foi para São Paulo ainda muito jovem. Morou em Marília, Garça e Franca, grande polo calçadista, onde aprimorou sua arte de sapateiro e se tornou modelista de calçados femininos. Em Santa Maria, num primeiro momento, foi seleiro, como era seu pai. Ao retornar daquele Estado, continuou a exercer o ofício de sapateiro, principalmente, a fazer botinas, bozerguins (“bruzegos”), “precatas salga-bunda”, chuteiras, sandálias e botas femininas. E ainda tinha um curtume na Sambaíba, o mais antigo bairro santa-mariense, às margens do Rio Corrente.
De retorno ao futebol, assistimos, eu, ele, Lara, Glécia e Thiago, ao jogo da Copa 2014, Bósnia-Herzegovina e Irã, na Arena Fonte Nova. Ficou encantado. Pediu até para tirar foto com grandalhões torcedores iranianos, coisa rara, pois não era muito afeito a fotografia. E ainda comentou: “é cada cepa de homem”. E o mais surpreendente, até ola ele fez no estádio, já que era bem tímido, e ainda me chamava atenção: “lá vem a capadoçagem levantando, lá vem, lá vem, prepare”.
Mesmo depois do AVC, continuou a fazer seu “jogo simples”, isto é, o de valor mínimo, da Loteca. Ele mesmo ia à Casa Lotérica pagar a aposta. Como tinha mais de 80 anos, ainda “tirava onda” com quem estivesse aguardando nas filas, dizendo que iria “furar a fila”, o que era recebido com naturalidade pelas demais pessoas, visto que o caixa, quando o via, sem demora lhe chamava.
Numa dessas ocasiões, coincidentemente minha irmã Glécia foi pagar alguma conta na mesma Lotérica e o encontrou na fila. Ela não se fez notar e ficou logo atrás dele. De repente, alguém puxou conversar com ele:
— E aí, Seu Tião, fazendo uma fezinha na Loteca, né?
— É, eu tô aqui tentando a sorte. Eu já disse lá em casa, pode faltar dinheiro pra tudo, até pra comida, mas para meu jogo, não. Jandira sabe disso.
Glécia ouviu tudo aquilo, porém não se deixou notar para ele não ficar sem graça, pois ela sabia, como todos nós, demais filhos e esposa, sabemos de que se tratasse de simples brincadeira, porque ele foi um pai que nunca deixou faltar nada em casa, mesmo a viver de sua pequena sapataria. Sempre procurou nos dar os melhores exemplos de honestidade e humildade. Nunca gostou da arrogância ou da soberba, palavra muito usada por ele, e costumeiramente nos repetia isso.
Atualização monetária. Disponível em: <https://calculoexato.com.br/result.aspx?codMenu=FinanAtualizaIndice&cce=001>. Acesso em: 22 jul. 2020.
Boiadeiro Miron. Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/boiadeiro-miron-de-goias-fica-milionario-com-premio-da-loteria-esportiva-em-1975-10712142#:~:text=Criada%20em%2027%20de%20maio,lot%C3%A9ricas%20e%20revelou%20muitos%20sortudos>. Acesso em: 22 jul. 2020.
História da Loteca. Disponível em: <https://ganharnaloteria.com/blog/historia-da-loteca/#:~:text=In%C3%ADcio%20da%20Hist%C3%B3ria%20da%20Loteca&text=Sua%20primeira%20rodada%20experimental%20aconteceu,de%20100%20mil%20bilhetes%20distribu%C3%ADdos>. Acesso em: 22 jul. 2020.
Loteca: resultado do concurso 893. Disponível em: <http://loterias.caixa.gov.br/wps/portal/loterias/landing/loteca/>. Acesso em: 27/7/2020.
Os 50 anos da Loteria Esportiva: a origem da zebra e máfia dos resultados. Disponível em: <http://bnldata.com.br/os-50-anos-da-loteria-esportiva-a-origem-da-zebra-e-mafia-dos-resultados/>. Acesso em: 26/7/2020.
Imagens utilizadas:
Concurso nº. 1. Disponível em: <https://agenciach.com.br/wp-content/uploads/2019/04/Loteria-esportiva-teste-1.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.
Concurso nº. 54. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/volante-da-loteria-esportiva-concurso-54-D_NQ_NP_826059-MLB29857815011_042019-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.
Concurso nº 55. Cartão perfurado. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/volante-da-loteria-esportiva-concurso-54-D_NQ_NP_826059-MLB29857815011_042019-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.
O Coringão no Futebol nº. 253. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/o-curingo-no-futebol-253-loteria-esportiva-1975-D_NQ_NP_220901-MLB20445463982_102015-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.
Volante da Loteca atual. Disponível em: <https://br.doctorlotto.com/wp-content/uploads/2019/05/volante-loteca-cartela-1024x862.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.
Zebrinha. Disponível em: <https://i2.wp.com/www.sitefutebol.com.br/wp-content/uploads/2017/07/ZEBRINHA.jpg?fit=389%2C285&ssl=1&w=640>. Acesso em: 23 jul. 2020.
Nosso pai Tião Sapateiro deixou cada lembrança boa com suas prosas bem humoradas. E quando ele ñ conseguiu mais andar sozinho até a lotérica,me mandava logo cedo registrar os jogos que ele mso fazia questão de marcar. E eu tinha que comprar na banca de revista de Pedrinho a revista Brasileirão para ele acompanhar os times. Abraços Glécia
ResponderExcluirGrande abraço Novais, que boas lembranças, isto renova nosso amor e respeito aos que já se foram, Parabéns amigo
ResponderExcluirNovais, Seu Tião pai-vivo. Pai vivo em tão belas memórias afetivas. E, parabéns pelo seu dia dos pais👏
ResponderExcluirComo sempré, crônica completa para mexer com as ternas lembranças. Feliz dia dos pais, amigo.
ResponderExcluirAs suas lembranças com seu pai, é muito pessoal, mas, a loteria e aquelas cédulas, faz muita gente voltar ao tempo, inclusive eu. Abração amigo.
ResponderExcluirÉ sempre maravilhoso,refletirmos nas coisas simples,marcantes da vida,isto sao valores que fikam pra sempre!!
ResponderExcluirPrimo Tião foi simplesmente a imagem da humildade. Um valoroso cidadão e que tenho imensa honra em ser parente. Abraço familia maravilhosa.
ResponderExcluirBela crônica meu amigo!
ResponderExcluirParabéns!
Como sempre, bem escrito, em estilo alegre e salpicado de bom humor.
ResponderExcluirBeleza, bom escritor Novais.
Apluasos.
Continue a estimular o amor a leitura, essa sempre bela moda e delicioso vicio de que os brasileiros nao cobseguem gostar.
Não há o que falar. Só ficar enebriado e emudecido com trabalho tão maravilhoso e uma homenagem em vida. Como conheci e vivi com a maioria dos personagens e na mesma história. Nos anos 1979 vivemos os nosso anos dourados. O futebol e tudo relacionado a ele, inclusive o nosso doméstico, as loterias e os filmes nos transformavam em grandes debatedores de mesas redondas. Era no mercadão, no jacaré, no Santa Clara,na oficina de Pai Tião, o nosso Pai Tião, na escadaria do BB, até no Pingo Dágua (kkkkkk) bar do Maninho, Praça da Bandeira, Jardim B........, no parapeito da ponte de cimento. O texto me deu uma saudade danada! Todos deverão se lembrar do Jairo de Souza, que comandava os palpites para os jogos da semana seguinte. Novais se esqueceu de mencionar a lotérica da Rua Rui Barbosa, que foi instalada ali entre a casa do Anacleto e o Hotel Sertanejo. Obrigado poeta,
ResponderExcluirParabens, Novais! Texto bem escrito e envolvente.
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ResponderExcluirNão só criou como PARTICIPOU. falar dos políticos, até eu.
ExcluirObrigado, por seu comentário.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirFlavio Moreira foi um dos"idealizadores"da Máfia da Loteria Esportiva! era"jornalista"
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