No mês dos tradicionais festivais de música e poesia da cidade Ibotirama, eis a crônica que lhes apresento como forma de homenagear tão belo evento. Confiram.
Naquela época, eu morava em Salvador, na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória (CAES), já escrevia crônicas e poesias, e costumava expô-las no mural da residência, além de publicá-las no combativo O Posseiro, jornal autogestionário da minha cidade, dirigido por Joaquim Lisboa Neto, do qual fui um de seus colaboradores, assim como integrei, por algum tempo, o Conselho de Direção.
No ano de 1988, incentivado pelos estudantes moradores, fiz minha inscrição no III FEPI, com a poesia intitulada “Desventuras humanas”, que foi selecionada. Declamei-a, porém não logrei classificação para a grande final. Essa poesia, inclusive, foge um pouco a temática das demais que costumo escrever: não é românica, mas de questionamentos.
De que nos vale saber do Yang e do Yin
Se o mundo nos obriga a dizer sim?
Para que servem estruturas estabelecidas
Se sempre agimos pela exceção?
Por que você não tenta rompê-las
Ao invés de corromper-se
E diz um lacônico não?
De que nos adianta a Ciência e seus Princípios
Se seus fins não nos levam à paz?
E eu, que zorra nenhuma entendo,
Admiro as Leis do Tantra,
Inclusive uma que nos diz que o Universo
Vive em êxtase constante.
E nós, terráqueos, sub-raça errante,
Não passamos de excreta desse orgasmo,
Mergulhados no eterno marasmo
Esperando que um dia tudo vai mudar.
Vivo à espera de você, que me ignora,
E, ainda assim, não vejo a hora
De tê-la na cama, mesmo que seja na lama,
Pois acho que sou metade sem você.
Quisera ser (ir)racional ou, pudera,
Agir só pelo instinto, não sentir ciúme
E não ser tão burro a sua espera.
Ah, vou mergulhar no prana
E viver a paz sacana
Sem grana, que até mesmo critiquei.
De que me adianta saber que
O Átomo é o Universo em miniatura,
Se a esta altura — que onda! —
Nunca sei o que serei.
Salvador (BA), 16/3/1988
(Do livro Flutuando na areia, 1988, p. 9)
Naquele festival, fui com mais dois poetas: Manoel de Oliveira Santos, natural de Central (BA) e radicado em Santa Maria da Vitória, e Valter Batista Xavier, Doxa, santa-mariense, que nos deixou em 2019, motivo de homenagem que fizemos a ele e a Zeca Bahia no nosso X RPM — Recital Poético-Musical de Santa Maria da Vitória, naquele mesmo ano.
Um episódio, naquele III FEPI, protagonizado por Doxa, tornou-se indelével. Para perder a inibição, isto é, criar coragem para declamar seu poema, o poeta sorveu umas doses de uísque e foi para o desafio. Sua poesia fazia alusão ao então candidato a presidente Fernando Collor de Melo (15/3/1990 a 29/12/1992) que, nos “santinhos” distribuídos para o eleitorado, trazia as letras “Co” e “or” na cor azul e os dois “ll”, nas cores verde e amarela, que nosso poeta Doxa os apelidou de dois palitinhos.
Fernando Collor. Eleições de 1989. |
— Dois palitinhos clorofilados e xantofilados... Deu branco.
Fez pequena pausa, vasculhou rapidamente a cachimônia, reencarou a atenta plateia e, de novo, precedido de um “agora vai”, recomeçou seu poema:
— Dois palitinhos clorofilados e xantofilados... Deu branco.
Meu conterrâneo ainda tentou uma terceira vez declamar seu poema, sempre anteposto de um “agora vai”, mas desistiu, fato que deixou o apresentador e o público sem nada entender, visto que aquele “deu branco” pareceu, afinal, ser parte da poesia. Isso, tempos depois, foi motivo das mais belas gargalhadas e, como já disse, ficou a marca da sua poesia: “deu branco!”.
Passadas mais de três décadas, voltei a Ibotirama em 2019, mês de agosto, não para defender uma criação poética, porém para fazer parte da banca de jurados do XXXIII FEPI, convite feito por Abgail Montalvão, indicado que fui pela conterrânea Ângela. Tudo muito bonito, tudo bem organizado. Cidade e evento bem diferentes (para melhor) do que presenciei mais de 30 anos transcorridos.
Paulo Gabiru em apresentação. 2019. |
Crisna Imhof e Novais Neto. 2019. |
Lembrança de participação no Festival de Música e Poesias de Ibotirama. 2019. |
Aproveitei a oportunidade para lhe ofertar meu último livro “Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória”, publicado em 2009, quando o município completou 100 anos de emancipação política e administrativa, e mostrei-lhe minha tentativa de fazer uma coroa de trovas, gênero poético pelo qual nutro grande afeição — a trova — tanto a popular quanto a acadêmica.
Novais Neto, André Marques, Teiú Rocha e Paulo Gabiru. 2019. |
Quanto à coroa de sonetos, este gênero sim é bem conhecido dos sonetistas. Por ter o soneto forma rígida, isto é, dois quartetos e dois tercetos, o que totaliza 14 versos, a coroa de sonetos é formada por 15 sonetos assim distribuídos: o último verso do primeiro soneto será o primeiro do segundo soneto; o último verso do segundo soneto será o primeiro do terceiro e assim por diante, até completar 14 sonetos. O décimo quinto, e derradeiro soneto, será formado pelos últimos versos dos 14 sonetos anteriores e deverá representar a síntese deles.
Partindo, portanto, do modelo da coroa de sonetos, tentei fazer uma coroa de trovas, que também tem forma rígida: quatro versos (dez a menos que o soneto) setissilábicos (redondilha maior), com rimas perfeitas, alternadas (abab) e que deve ter sentido completo, isto é, ter princípio, meio e fim. E não leva título. Quanto à forma referida (abab), é a adotada pela União Brasileira de Trovadores (UBT), criada no Rio de Janeiro em 21/8/1966, enquanto que a Seção de Salvador é de 16/4/1969, da qual sou membro desde 1999.
Assim, a coroa de trovas assume a seguinte forma: o último verso da primeira trova deverá ser o primeiro verso da segunda; o último verso da segunda será o primeiro da terceira e assim por diante, até completar quatro trovas. A quinta trova será formada pelos últimos versos das quatro anteriores e deverá, tal qual o soneto, representar uma síntese delas. Vejam, portanto, minha tentativa:
Meu alvorecer (coroa de trovas) e WhatsApp de Paulo Gabiru. |
Além da coroa de trovas, apresentei a Paulo Gabiru a poesia por título “Já vai tarde”, que faz parte do repertório da Folia de Reis de São Francisco, de São Félix do Coribe (BA). Tempos depois, recebo dele um extraordinário presente: a mesma poesia musicada de forma surpreendente, para mim, e com a marca indelével e singular de seu dedilhar (ou acariciar, é melhor) as cordas do violão.
Fiquei por algum tempo a contemplá-la, ouvi inúmeras vezes. Finalmente, decidi por editar o vídeo que segue e, antes de publicá-lo no You Tube, para divulgá-lo, mandei-o para Gabiru, via WhatsApp, que me respondeu com a seguinte mensagem: “Ficou bacana demais. Leve e despretensiosa”. Ei-lo, portanto, para sua apreciação, meu caro leitor:
Obrigado, Mestre Gabiru, pelo não prometido, por isso mesmo, inesperado e surpreendente mimo. Ternamente, aceite meu abraço e gratidão.
Referências:
ARAÚJO, Carlos; FERREIRA, Edson Alves; PEREIRA, Edvaldo Joaquim. Ibotirama e as canções de agosto. São Paulo: Salvador: SCT, EGBA, 2013. 254p. (Coleção Apoio).
BOMFIM, Tâmara Rossene Andrade. Festival de música popular de Ibotirama: gênese e sobrevivência, na rota contrária a indústria cultural. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 2, n. 2, 2014. Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/grauzero/article/view/3266>. Acesso em: 18 ago. 2019.
CARUSO, Paulo Roberto de Oliveira. Coroa de trovas às brisas de outono. In: CONCURSO LITERÁRIO POESIAS SEM FRONTEIRAS, 16., 2017. Anais... Disponível em: <http://poesiassemfronteiras.no.comunidades.net/poesias-dos-vencedores-2017>. Acesso em: 31 jul. 2020.
NOVAIS NETO. Conselho de Direção. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 7, n. 61, p. 2, jun. 1986. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA061986061.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.
______. Colóquio flácido. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 13, n. 81, p. 8, fev. 1992. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA021992081.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.
______. Contrastes. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 5, n. 46, p. 2, dez. 1983. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA121983046.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.
______. Flutuando na areia. Salvador: Multipress, 1988. 112p. p. 9.
______. Já vai tarde. In: MALLERO, Chico; BOMFIM, Ana Helena. (Orgs.). Algumas músicas: Reis de São Francisco: São Félix do Coribe, 2017. 16p. p. 10. (Edição dos organizadores).
______. Mensagem ao estudante santa-mariense. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 5, n. 46, p. 9, dez. 1983. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA121983046.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.
______. Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Press Color, 2009. 164p. p. 109.
PRIMEIRO PROGRAMA ELEITORAL VAI AO AR NO RÁDIO E NA TELEVISÃO. Panfleto eleitoral de Fernando Collor, 1989. Disponível em: <https://efemeridesdoefemello.com/2014/09/15/primeiro-programa-eleitoral-vai-ao-ar-no-radio-e-na-televisao/>. Acesso em: 29 jul. 2020.
WANKE, Eno Teodoro. A trova. Rio de Janeiro (Guanabara): Pongetti, 1973.
Ao redigi esta crônica, tomei por base publicação em livro, trabalho acadêmico, revistas e sites confiáveis, os quais afirmam que o primeiro festival de poesia ocorreu no ano de 1986. Quando, no entanto, recebi, via e-mail, informação replicada pelo amigo e ativista cultural Cleber Eduão, com base em pesquisa feita por Jarbas Éssi, poeta e cineasta ibotiramense, percebi disparidade entre o ano inicial e o número de edições do referido festival. Voltei a verificar as fontes consultadas, a fim de buscar possível engano por mim cometido. Apaziguei-me, afinal, ao ler esta ressalva no mesmo e-mail, confirmada em postagem na página de Facebook do prefeito Terence Lessa:
[...]
[...]
Neste ano, corrigiremos um erro histórico no festival de poesia, acrescentando dois anos mais, que não foram contabilizados pelo poder público na época: festivais de poesia de 1985 e 1986. Sendo assim, completaremos 36 festivais ininterruptos de poesia.
[...]
Fonte consultada:
FESTIVAL CULTURAL VIRTUAL 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/prefeitoterencelessa/posts/2613439708692480>. Acesso em: 7 set. 2020.
[...]
Fonte consultada:
FESTIVAL CULTURAL VIRTUAL 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/prefeitoterencelessa/posts/2613439708692480>. Acesso em: 7 set. 2020.