O dia não tardaria a amanhecer. O ocidente em poucos instantes mostrará o belo arrebol, a denunciar que o Astro-Rei está acordando. E num festejo que se repete desde as primeiras eras, o dia sorri graciosamente no mavioso canto da passarada.
Não fazia muito tempo que havia conciliado o sono, coisa que não foi difícil, depois de natural cansaço após noitada de quentões e forró nos festejos juninos na praça do nosso Jardim Jacaré, palco maior de quase todas as grandes festas e eventos santa-marienses.
De repente, um som longínquo, sideral, vindo não sei de onde, num crescendo mágico e envolvente, começa a tomar conta do meu quarto. Saltei bruscamente da cama e, em completo desalinho, corri até a porta para ver, em princípio, “a banda passar”, digo melhor, ver a filarmônica passar acompanhada por uma multidão.
Ali, pois, diante dos meus olhos sonolentos e enevoados, passava a Philarmônica 6 de Outubro em inconfundível e contagiante alvorada, a dizer a todos quantos a ouviam que Santa Maria da Vitória, naquele dia, 26 de junho de 1992, completava seu octogésimo terceiro aniversário de emancipação político-administrativa.
A Cidade Riso [outrora assim chamada] merece — bem fundo pensei — o que me deixou de olhos marejados a denunciarem grande contentamento. Ela sabe como ninguém acolher seus filhos naturais e adotivos, não importa. Pena é que, como toda mãe, por mais bondosa que seja também tem seus filhos ingratos, que a maltratam e fazem-na sofrer e chorar.
Naquele momento, sonho e realidade confundiam-se. Senti o coração pulsar mais fortemente e um gostoso arrepio abraçar gradualmente o corpo inteiro. Uma vontade incontida de acompanhar aquele séquito tomou conta de mim. E assim o fiz, como estava mesmo: rosto, camisa... todo amarrotado. Importante mesmo era saborear e deglutir suavemente a inebriante música filarmônica.
Muitos rostos conhecidos percebi. Um deles, o de Luiz Cayres, advogado e batalhador pela preservação do nosso centenário Tamarindeiro, protegia-se, bem agasalhado que estava, daquela friíssima manhã junina.
Apressei os passos, passando a ficar lado a lado com Renan de Luiz Soldado e Carminha, igualmente protegidos do frio, curtiam os dulcíssimos acordes daquela banda, dificilmente ouvidos nas cidades grandes.
Um pouco adiante, na Rua do Mercado Municipal, deparamos com um dos madrugadores, Dedé Marques a fazer sua caminhada matinal. Um pouco atrás, já havíamos encontrado com uma figura inconfundível, o roqueiro Binha de Dirce de Vavá de Cirilo, com Naná, irmã de Irineu do Tamarindo Bar que, entre tragos e pulos carnavalescos, não se conteve e desabafou:
— Poeta, poeta, este é o som da minha terra. Meu rock’n’roll favorito, santa-mariense, que não se compara. Meu som, poeta. Sacou?
À frente da banda, como se estivesse guiando a multidão, ia Protógenes Braga, Seu Toge de Seu Agnelo ou Seu Toge de Lourdes, comerciante nas horas próprias, auxiliar de enfermagem, farmacêutico, enfermeiro e até parteiro nas horas de improviso. Figura humana das mais prestativa e amiga, entusiasta presidente da Filarmônica.
Além deste, a comandar o foguetório, um policial militar, o cabo Rosival Neves, meu tio, o popular Rosi ou Peixe, também ia à frente, a soltar rojões, os famosos adrianinos, a contar vantagens, a criar histórias, seguido de perto pela meninada. É Rossi a fazer sua festa particular, como sempre gostou. Nos dias de futebol, levava fanfarra e caixas de foguetes para o campo.
Cabo Rosival Neves, Novais Neto e Jandira Almeida Neves. 1992. Foto: Arquivo pessoal. |
Quem não teve o privilégio de ouvir bandas como essa, não avalia quanto é criminoso vê-las acabando, morrer à míngua. Entidade de utilidade pública, a filarmônica da minha terra sobrevive graças às vontades férreas de seus componentes, pois nenhum deles recebe remuneração por ser músico. A maioria é formada por funcionários públicos aposentados. Há mestre de obras, pedreiro, sapateiro, alfaiate, trabalhador rural, taxista, carcereiro, carapina, mecânico, eletricista, estudante, bancário etc. Dois de seus integrantes têm mais de 70 anos e nenhum, menos de vinte. Apenas Seu Júlio Pedreiro é natural de Correntina (BA), os demais são santa-marienses.
Pessoas comuns, do nosso convívio, esses músicos por excelência e colaboradores prestimosos guardam viva a memória da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro, fundada em 22 de novembro de 1908, pelo Coronel Bruno Martins da Cruz, cujo nome é homenagem ao natalício do mesmo. Seu Bruno, como a ele se referem os mais velhos, foi intendente de Santa Maria da Vitória em dois períodos: 1893 a 1896 e 1917 a 1920.
Sousafone (tuba). Acervo: Nélson Neves. Foto: Novais Neto. |
João de Otacílio, Orivaldo Graia, Tazo, Sinhô de Joana, Altamiro de Jesus e Nélson Neves; Caduzinho, Henrique, Júlio Pedreiro, Nem Carapina, Quinca Coimbra e Nem Afonso; Wilson, Maninho Guarany, Rubem, Otávio Graia, Dalvo Graia, Gil e Agnaldo; Binha de Vicente Preto, Paulinho de Otaviano (ou de Dona Zulmira), Luciano de Jesus, Napu, Zé Torres e Agnelo Braga Neto, homens simples, trabalhadores que, apesar das lutas e labutas cotidianas, ainda nos oferecem momentos singularíssimos de regozijo e prazer.
De volta ao nosso passeio matutino-musical, estamos a ouvir, nesse momento, o belíssimo dobrado Cisne Branco. É literalmente onírico o que vemos. As pessoas abrem as janelas, portas e se amontoam para verem e ouvirem a banda executar os dobrados – músicas nem brega nem chique, sem qualquer rotulagem. Algo incomparável, muitos aparecem envoltos em cobertores.
Bem alto, dia claro, o Sol começa a aquecer aquela friorenta manhã de junho. Estamos na Rua Padre Othon Vieira Lima (Rua dos Doidos), bem em frente à sede da Filarmônica, ao lado do Baneb. Os músicos entram primeiro. Minutos depois, tempo suficiente para algum apronto, adentramos nós.
Sede da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro. Santa Maria da Vitória, BA. Foto: Novais Neto. |
Sede da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro. Santa Maria da Vitória, BA. Foto: Novais Neto. |
Nélson Neves, Novais Neto e Altamiro de Dona Maria. Foto: Arquivo pessoal. |
Janilza (Nena), Nélson Neves, Glécia Neves, Novais Neto (atrás), Thiago Afonso, Menininha e Adnair Neves |
Novais Neto e Tilixa (músico de Correntina, BA). Foto: Arquivo pessoal. |
Esta crônica foi escrita em junho de 1992. Hoje, é bom registrar, a Filarmônica tem história melhor para nos contar. Há músicos jovens que se somam aos antigos batalhadores, porém, não dispõe ainda de um maestro. No ano de 2004, a 6 de Outubro passou a ter uma coirmã, a Lira do Corrente, composta predominantemente por jovens músicos entusiastas.
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Sociedade Filarmônica Lira do Corrente. Foto: Acervo: Fabrício Santos. 2020 |