domingo, 12 de abril de 2020

O ladrãozinho que caiu do céu

Nesta crônica, apresento Maninho da Churrascaria, figura que fez parte da minha infância, trabalhando de sapateiro na tenda de meu pai. Confiram.

Desde que me entendo por gente, como se diz popularmente, que o conheço, não como Maninho da Churrascaria, mas Maninho de seu Joaquinzinho, trabalhando na tenda de sapateiro do meu pai. Um homem calado, mas de sorriso fácil, muito laborioso, e que gostava de cantar músicas rotuladas “dor de cotovelo” ou “dor de meio de braço”, para assim amenizar o dia.

Tenda de Tião Sapateiro, onde é hoje a Tenda de Nélson, seu irmão. Na foto: Maninho, Arnaldinho e Nélson Neves. Foto gentilmente cedida por Arnaldo Oliveira (Arnaldinho) a Nélson Neves, que me presenteou. Foto: Anos 1960.

Na tenda do meu pai, Tião Sapateiro, na cadeira em que Maninho sentava, na verdade, um banco com assento de couro, havia um enorme buraco circular bem no meio, o que aguçava minha curiosidade de menino, porque eu não entendia a razão daquele furo. Porém, segundo ele, “era para não ter hemorroida”. Só isso mesmo?! Sei não! Tenho minhas dúvidas!

Quanto ao apelido Maninho da Churrascaria, já que ele nunca fez e tampouco vendeu churrasco, adveio do nome do ponto, anteriormente, Churrascaria do Gaúcho, que fechou as portas. Maninho mudou-se para o local e sequer tirou o nome, por isso passou a ser conhecido por Maninho da Churrascaria. A bem da verdade, o que ele vendia de origem animal era apenas salsicha, quitute, mortadela e ovo cozido. Vendia também um famoso doce de leite, além de bolo, pinga, cerveja, refrigerantes, refresco de Q-s
uco em garrafa de Sukita, bombons Nilva e batida de limão etc.

O pai de Maninho, seu Joaquinzinho, era fiscal da Prefeitura, que tinha a obrigação, dentre outras, de verificar o cumprimento de uma lei municipal chamada “portas abertas”. Isto é, esta lei tinha por objetivo cobrar imposto de quem comercializava produtos em bodegas, vendas, armazéns etc. Seu Joaquinzinho era, também, dono de uma vendinha em sua casa, onde se podia comprar diversos mantimentos, inclusive uma famosa puxa ou puxa-puxa, doce grudento, de consistência elástica, 
que era uma delícia, feito de melaço de rapadura por sua esposa, dona Lídia. E que acabava logo.

Maninho, cujo verdadeiro nome só vim a saber, quando alinhavava esta crônica, é Manoel Ferreira do Nascimento, como consta no seu batistério, na certidão de nascimento etc. Ao casar-se com Francisca Graia, conhecida por Dita, passou a ser Maninho de Dita, como é costume no interior deste imenso Brasil apelidar as pessoas aditando nome de pai, mãe, cônjuge, algo, fato, profissão, alguma coisa que o identifique melhor. Seguindo a tradição, a esposa do nosso protagonista não ficou ilesa e virou, naturalmente, Dita de Maninho da Churrascaria.


Qualquer que seja o Maninho, é ele o mais famoso “papagaio de pirata” que conheci, sem qualquer conotação pejorativa, diga-se de passagem. Está em quase todas as fotos de acontecimentos importantes da cidade. Tive eu, também, o enorme privilégio de tê-lo numa foto, quando da noite de autógrafo por ocasião do lançamento do meu primeiro livro, Flutuando na Areia, há mais de 30 anos.

Maninho na frente do palco da Filarmônica Seis de Outubro. 1988. Acervo do autor.
A primeira festa de que participei, foi o casamento de Maninho. Eu, com sete anos, e meu amigo Jairo Rodrigues, com seis. Foi ele, inclusive, quem me ensinou a cantar uma de suas canções prediletas, Paixão de um homem, de Waldick Soriano. Esta foi a primeira música que decorei. Ele também me ensinou a contar. Eu sabia fazer isso até 19 e parava por aí. E Maninho então dizia para mim:

— De 19 pula pra 20, e aí vai: 21, 22, 23...

E eu, seu aluno, já a me sentir dono da situação, continuava:

— Vinte e quatro, vinte e cinco... vinte e nove, vinte e dez, vinte e onze...

Maninho abriu um imenso sorriso e me ensinou de novo:

— De 29 pula pra 30 e vai até 39. De 39 vai pra 40, e daí pra frente – e assim, nessa “pegada”, cheguei a 99, parei e perguntei ao meu mestre:

— E agora, Manim, de 99 pula pra quanto?

— De 99 pula pra cem e continua do mesmo jeito.

Uma vez mais, achando-me dono da situação, continuei minha contagem:


— Cem um, cem dois, cem três... — e o professor Manim me corrigiu em cima da bucha:

— Cento e um, cento e dois, cento e três...

— Oxente, Manim, tá errado. Você falou nestante que de 99 pulava pra era cem e não pra cento. Como é então?

— Mas é assim mesmo — tentou ele inutilmente contrariar minha lógica de criança. E mesmo sem entender direito, fiz isso até mil. Ufa! Nunca me esqueci das suas aulas.


Lembro-me como boa recordação e alegria, que o filho de seu Joaquinzinho Fiscal também aprontava comigo, não somente me ensinava a contar e cantar. Juntava-se a Nélson Neves, meu tio, para que eu imitasse, aliás, como eles mesmos diziam, para que eu remedasse os considerados os doidos de meus tempos de menino, tais como Quincão, Chico Doido, Besta Fera e, principalmente, Júlio Doido.

Meu querido conterrâneo tinha uma inseparável companheira: uma bicicleta Monark, vermelha, reluzente, muito bem cuidada, que não emprestava a ninguém, e que lhe servia de transporte rápido para deslocar-se para onde houvesse um acontecimento, uma multidão, um fotógrafo.


Maninho e sua bicicleta Monak. Foto gentilmente cedida por seu filho Diógenes. Acervo familiar.

Santa Maria da Vitória, no entanto, cresceu muito, o que lhe exigiu mais rapidez nos deslocamentos, obrigando Maninho a adquirir um veículo mais ágil. Comprou, portando, uma motocicleta, igualmente vermelha, e uma flanelinha da mesma cor, sempre à sua disposição para limpá-la. As pernas do filho de Joaquinzinho já não tinham mais o desempenho da juventude, o que é normal, porque janeiro dá, janeiro toma”, segundo o adágio popular repetido por colega e amigo xique-xiquense, Paulo Teixeira.

Novais Neto e Maninho. Fotos de celular: Raquel Queiroz. 2019.
Maninho de Dita era dono de um bar na Praça da Bandeira, local muito frequentado por seus amigos, lugar perfeito para pôr o papo em dia. Lá se sabia de tudo que acontecia na cidade. Seus mais fiéis frequentadores eram Zé de Paula, Doxa, Jaime Charuto, Manelinho, Pedrinho, Aroldo Paes, os irmãos Wilson e Zezinho de Henrique, Quinca de Zezito, Quinca de Jaime Novidade, Dui, Tuca Tonhá, Queto de Augusto, Pedro de Afonso, os irmãos Dida e Togim de Protógenes, Tõi de Palu, Tõi da Camab, Isoterano, Fernando Santana, Flávio Bonfim, Daltro, Renato de Naná, Ataidinho, os irmão Tõi Mora e Miranda de Altamiro, Paulinho de Nestor, Zé Sugesta, os irmão João e Robertinho de Gildésio, Bequinha, Chiquinho do Santa Clara etc.

Além desses habituais frequentadores, a turma do futebol sempre se fazia presente, principalmente, depois de jogos. Eu e meus colegas de escola, como Messias Chaves, Juscelino de Tibério, Vandinho Lisboa, os irmãos Saulinho de Milu e Batista de Quinquinha (ou do Correio), Tito Gardel, Neno Graia, Newilton de Gildésio, Agnelo Profissi, Jurandyr, Jaiminho Coruja, Wilton de Afonso, dentre outros, aparecíamos por lá, à noite, nos intervalos ou depois das aulas. Quando havia festa no Clube Dois de Julho, o bar ficava entupido de gente.

Meu compatrício abria o bar bem cedo, porém, era seu sobrinho Litinho (nome fictício) quem tomava conta até perto do meio-dia, quando Maninho vinha liberá-lo para o almoço. Aguardava seu retorno, que não demorava, para só depois ir fazer a mesma coisa: pegar a boia e só voltar lá pelas quatro horas da tarde, quando o Cine União começa a anunciar seus filmes.

Litinho tinha o hábito de tomar um aperitivo antes do almoço, no que era repreendido veementemente por Maninho, motivo de vários sermões. Para tentar ludibriá-lo, Litinho deixava a dose já pronta, bem escondidinha, que era para quando Maninho viesse chegando, lá pelas 11 horas, tivesse tempo de beber sua preciosa e indispensável aguardente, “para abrir o apetite”, dizia ele.

Certa ocasião, Maninho chegou antes do combinado, chegou mais cedo, e Litinho não havia ainda preparado seu aperitivo costumeiro. Ficou, por ali, adiando a saída, à espera de um descuido do tio para tomar sua bebidinha. Maninho, entretanto, começou a dar-lhe pressa, pois precisava que ele fosse almoçar logo e voltar em cima do rastro, visto ter inadiável compromisso bem no início da tarde. E, neste impasse, nesta enrolação toda, eis que repentinamente, do nada, algumas pessoas passam correndo atrás de alguém em direção à Rua de Cima, a gritar:

— Pega o ladrão! Pega o ladrão! Pega o ladrão!

Meu amigo da churrascaria não contou conversa, esqueceu-se do compromisso, passou a fome, montou rapidinho na sua bike e saiu em disparada atrás do ladrão. Aliás, atrás da notícia.

E, Litinho, finalmente aliviado, foi para a calçada do bar, mirou a Igreja Matriz bem a sua frente, ajoelhou-se e, de mãos postas, como o olhar voltado para o Infinito, exclamou, agradecido:

— Ô ladrãozim que caiu do céu! Muito obrigado, meu Deus! — e sorveu, desse modo, sem qualquer pressa, feliz, sua deliciosa e tão desejada cangibrina.

E agora? Agora, só lhe restava esperar e esperar pela volta do dono do boteco, porque somente Deus, o mesmo Deus que lhe mandou o providencial ladrãozinho, poderia trazer Maninho de volta. A que horas? Isso não se poderia prever. E Litinho sabia disso.

10 comentários:

  1. Como sempre belas histórias e recordaçoes da nossa cidade Santa Maria da Vitóris , sempre bom relembrar contos que faz muito bem p/ nossa mente, parabéns coroa kkkk

    ResponderExcluir
  2. Adorei! Parabéns amigo, sempre me alegro com suas estórias e histórias. Grande abraço.

    ResponderExcluir
  3. Meu caro Novaes. Seu maninho foi meu vizinho no alto do cruzeiro.

    ResponderExcluir
  4. Muito bom. Parabéns!!!! Painho realmente é figura histórica de Santa Maria da Vitória. Como filha agradeço o carinho e reconhecimento a pessoa do meu pai. Grande abraço. Vou mostrar p ele.

    ResponderExcluir
  5. Novais, você se lembra de "Dúi" que trabalhou depois no bar de Hugo e acho que também no bar do Seu Helvécio (próximos da agência de ônibus do Badeco) Se ele trabalhou antes no bar de Maninho?

    ResponderExcluir
  6. Realmente meu pai é uma grande figura histórica dessa cidade maravilhosa onde nacir e me criei tenho muito orgulho de ser sua filha e obrigada pelo carinho e reconhecimento a esse grande homem que é meu pai.

    ResponderExcluir
  7. Meu avô maninho, homem bom. Muito bom saber do passado do meu Vô, agnt viaja no tempo sem nem mesmo ter vivido esse tempo. Ele vai gostar muito desta homenagem. Obrigado.

    ResponderExcluir
  8. Kkkkkkkkkkkkkkk. Essa eu não sabia: Maninho da Churrascaria. Eu frequentei muito o bar dele na Pça da Bandeira. Tinha um licor de genipapo que era o meu favorito. Quando faltava maconha pra fazer a cabeça, eu tomava esse licor e pedia para ele acrescentar junto uma dose de pinga. Bastavam 3 ou 4 doses de licor de genipapo com pinga para suprir a falta da maconha. KKkkk. Outras décadas. Me fez lembrar de mta coisa boa da minha juventude transviada, anarquista. Valeu, mestre. Abraço!

    ResponderExcluir
  9. Grande Novais vc é um gênio ,parabéns bela história de vida,isto é uma prova que você sempre foi um bom aprendiz começou cedo aprendendo os números,hoje um grande escritor ABRAÇO meu amigo vizinho....

    ResponderExcluir

Quem sou

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...