sábado, 5 de setembro de 2020

Dirce de Assis e o carranqueiro Guarany

Na década de 1970, Dirce esteve em Santa Maria da Vitória para conhecer o Mestre Guarany. Descubra quem é Dirce e se surpreenda.

Finalzinho de tarde de um dia qualquer do ano de 2019, temperatura um pouco mais amena, depois de um dia inteirinho de Sol tinindo, estou eu defronte sua casa. Bato duas ou três vezes no portão de ferro ainda bastante quente, olho pela greta entre aquele e a parede, e chamo somente para reforçar:

— Jairo Rodrigues, tem gente! E é de paz!

— Já tô indo abrir o portão, companheiro.

Novais Neto e Jairo Rodrigues. 2020. Foto (selfie): Novais Neto.
Sem demora, ele aparece nu da cintura para cima com um chapéu de palha surrado na cabeça e uma mangueira, aberta, na mão direita, que passa à esquerda. Depois de me cumprimentar efusivamente, ajeita a barbicha há décadas cultivada, enrola as pontas do bigode à Salvador Dalí e, com um largo sorriso que lhe é próprio, me convida:

— Vamos entrar, companheiro poeta. Só vou terminar de molhar as plantas, rapidinho... — e emendou a conversa sem mais nem menos:

— Ganhei um livro de presente de um amigo de Barreiras e quero lhe mostrar. Fiquei abismado com a descoberta!

Entrei e fiquei por ali mesmo a curiar, assuntando tudo, sentado num banco tosco já bem carcomido pelo tempo, a vê-lo terminar a empreitada de molhação de plantas, que habitualmente faz nos fins de tarde. Finda a tarefa de jardinagem, lá vem Jairo com um livro na mão, página já demarcada e me pede que leia. E sem pressa alguma, foi preparar um café com rapadura. O livro é “O Velho Chico ou A vida é amável”, escrito por Dirce de Assis Cavalcanti.

Sem demora, Jairo retorna com a parafernália do café, isto é, com a cheirosa “solução aquosa de rubiácea”. Bastante eufórico, quase a gaguejar, confessou-me ter gostado da obra por três motivos: o primeiro é que a autora, que esteve em Santa Maria em 1975, disse ter amado a cidade e sua gente; o outro é que ela foi lá especialmente para conhecer Guarany, de quem Jairo é guardião de suas ferramentas de trabalho e documentos, e profundo conhecedor da obra do mestre das carrancas; e o terceiro e último motivo refere-se ao prenome da escritora, o mesmo da sua mãe, Dirce. Digo melhor, Dirce de Vavá de Cirilo, para não fugir à regra dos originais apelidos interioranos.

Livro O Velho Chico ou A vida é amável (1998) / Dirce de Assis Cavalcanti / Livro O pai (1990).
Li, reli, trili e assino embaixo. Jairo está coberto de razão. No entanto, dentre os motivos por ele elencados, excluo o último, já que o nome da minha mãe é Jandira (de Tião Sapateiro) e não Dirce, e o substituo por outro: a autora afirma ter feito várias fotos da cidade, inclusive da antiga feira ainda na Praça dos Afonsos, e tenho eu particular interesse nesses registros fotográficos da década de 1970.

E mais ainda. E principalmente: lembrar à renomada escritora da promessa que lhe teria feito o Mestre Guarany, segundo ela mesma conta em seu em livro “O Velho Chico ou A vida é amável”, de que viveria até os 100 anos. Resultado: Seu Guarany não somente cumpriu o dejúrio, mas foi além dele, chegou aos 103 anos.

Guarany pelos traços de Jairo Rodrigues (1982) / Guarany. Foto: Tião Fotógrafo (1983).
Um fato trivial abordado pela escritora foi ter conhecido uma figura muito gentil, morador ao lado da casa Seu Guarany, na antiga Rua das Flores (Rua dos Doídos), pintor de paredes, letreiros, calendários, quadros e barcos, que testava suas tintas na janela da própria casa. Como Dirce é também artista plástica, pensou comprar a janela do pintor, “sua maior obra”, porque a achou kitsch, mas o homem certamente não venderia “um naco da sua casa”. E a negociata ficou apenas na intenção da artista.

Este pintor por ela referido é, certamente, depois de verificações feitas por parte de Jairo Rodrigues e Hermes Novais, João Pereira de Souza, mais conhecido por João Mandhoca (assim mesmo, para ser fiel à pronúncia da minha terra, e não Mandioca), que era analfabeto, no entanto abria (desenhava) letreiros em barcos e casas comerciais em Santa Maria e cidades circunvizinhas.

Depois da leitura, do café com biscoito frito e de um bom bate-papo, já estava na hora de voltar para casa, afinal, acabara de receber intimação materna, via celular. E já como nos conhecemos há muito tempo, bem sabemos que a despedida de Jairo dura o dobro do tempo das conversas, porque um papo sempre puxa outro e outro, e ninguém arreda pé. No entanto, nos despedimos assim mesmo.

De volta a Salvador, adquiri o livro através de site da Internet e aguardei a chegada. Nesse ínterim, pesquisei sobre a escritora, visto meu interesse pelas fotos, o que já dito. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que Dirce é filha de Maria Antonieta de Araújo Jorge com Dilermando Cândido de Assis, o homem que matou Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”, como também o filho deste, Euclides da Cunha Filho. Antonieta, segunda esposa de Dilermando, é prima J. G. de Araújo Jorge, o festejado Poeta do Povo e da Mocidade.

O primeiro casamento de Dilermando foi com Ana da Cunha, viúva de Euclides, com quem já havia tido envolvimento amoroso, ele, há época, cadete do Exercito Brasileiro, com 17 anos de idade e ela com 33, o que culminou em crime passional, conhecido como “A Tragédia da Piedade”, após tentativa de assassinato por parte de Euclides, escritor membro da Academia Brasileira de Letras.

O casal se separou quando ele contava 50 anos. Dilermando relacionou-se em seguida com Antonieta, de cuja união vingou apenas Dirce que, devido ao sofrimento de ser apontada como a filha do “homem que matou Euclides”, escreveu outro livro por título “O Pai”, defendendo o genitor da pecha de assassino, uma vez que, segundo a escritora, ele só matou para livrar a própria vida, nos dois crimes.

Esta também foi a mesma tese defendida pelo advogado de Dilermando, Evaristo de Morais, e aceita pelo corpo de jurados nos dois episódios. O próprio Dilermando, engenheiro civil, escritor e maçom, escreveu o livro “A Tragédia da Piedade” (Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1951), no qual se defende do estigma de assassino. E, segundo ele próprio, se algum crime cometeu, foi ter amado uma mulher casada de 33 anos, ele, um jovem inexperiente, de 17.

Mesmo após os júris populares, inocentando-o, a sociedade brasileira do início do Século XX jamais os perdoou: ele, pelas mortes de Euclides da Cunha e do filho deste, e Ana, a mulher adúltera. Esse episódio foi motivo de inúmeras peças de teatro, ópera, minissérie da Rede Globo, e extensa reportagem no G1, datada de 9/7/2019 (vide Referências), na seção Pop & Arte.

Dirce de Assis. Foto: Reprodução / G1 (Vide Referências)
Quanto à escritora que tão poeticamente e com incomparável competência escreveu seus livros, tentei manter contato com a mesma desde 6/12/2019, por intermédio da Ateliê Editorial, que publicou  seu livro “O Velho Chico ou A vida é amável” e se prontificou a ajudar-me no intento. Infelizmente, até o momento, não obtivemos êxito.

Referências

AS MORTES DE EUCLIDES DA CUNHA E SEU FILHO. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/as-mortes-de-euclides-da-cunha-e-seu-filho>. Acesso em: 11 dez. 2019.

CAVALCANTI, Dirce de Assis. O pai. 4. ed. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial: LTC-Livros Técnicos e Científicos, 1990. 112 p.

______. O Velho Chico ou a vida é amável. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. 160 p.

DESEJO (minissérie). Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Desejo_(miniss%C3%A9rie)>. Acesso em: 11 dez. 2019.

DILERMANDO DE ASSIS. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Dilermando_de_Assis>. Acesso em: 11 dez. 2019.

DIRCE DE A. CAVALCANTI E A TRAGÉDIA DE EUCLIDES DA CUNHA. Disponível em: <http://saboreandooslivros.blogspot.com/2009/02/dirce-de-acavalcanti-e-tragedia-de.html>. Acesso em: 11 dez. 2019.

DIRCE DE ASSIS CAVALCANTI. Biografia. Disponível em: <https://www.atelie.com.br/publicacoes/autor/dirce-de-assis-cavalcanti/>. Acesso em: 11 dez. 2019.

FILHA BUSCA JUSTIÇA HISTÓRICA PARA PAI, QUE MATOU EUCLIDES DA CUNHA. BBC News Brasil. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2019/07/09/filha-busca-justica-historica-para-pai-que-matou-euclides-da-cunha.ghtml>. Acesso em: 11 dez. 2019.

FILHA LUTA POR JUSTIÇA HISTÓRICA PARA PAI NA MORTE DE EUCLIDES DA CUNHA. BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CPwQ9HPApwQ>. Acesso em: 11 dez. 2019.

7 comentários:

  1. Como sempre, bons seus escritos Novais. Coisas da vida, um conto leva a outro conto. Assim é a Teia da Vida.

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  2. Como sempre curiosa e atrativa. Você é talento Novais, parabéns por ser tão bom e claro com as palavras.

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  3. Eu assisti a Minissérie e gostei muito.
    Também gostei de seu texto de cunho poético com fundo de historiador kkkkk.

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  4. Desta vez meu irmão e colega poeta Novais, com a doçura e magia de sempre, conseguiu misturar história, romance e entrigas cheias de muita energia boa ao mesmo tempo forte. A história do passado se mistura com o presente na sua sensível e poética abordagem... Parabéns . Luciano Diniz.

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  5. Relato impressionante mais uma pessoa que só engrandece a história de Santa Maria.

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  6. Parabéns! mais uma vez você narra um fato de forma tão brilhante. Me lembro dessa minissérie passou quando nós ainda estávamos no banco.

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  7. Parabens, Novais por mais um texto brilhante!

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Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...