domingo, 26 de abril de 2020

Bruto que nem argola de laço

Nesta crônica, apresento os homens supostamente mais brutos de Santa Maria da Vitória e o folclore alimentado por seus causos de brabeza. Confiram e divirtam-se.

De tempo em tempo, em Santa Maria da Vitória, circula uma lista com nomes dos homens supostamente mais brutos da cidade. Nos botecos, onde provavelmente esta relação é arquitetada, surgem comentários variados e histórias risíveis de brutalidade que acabam por alimentar ainda mais o rico e belo folclore da minha terra.

Interessante mesmo é que essa listagem, em lugar de provocar a ira daqueles que, porventura, dela façam parte, pelo contrário, é motivo de vaidade, certamente por entender se tratar de uma brincadeira. Segundo um amigo barbeiro, Valinho, em não ver seu nome numa dessas listas teria feito, indignado, o desdenhoso comentário:

— É!... Hoje em dia não se pode confiar em mais nada. Nem uma lista dessa é feita com honestidade. Não tá vendo que nem Chicão Okofô nem Manelão Três-Toras não é mais bruto do que eu! Todo mundo sabe, só esse meia-tigela, fazedor de lista num vê isso. Aí, com certeza, deve ter o dedo da oposição! Só pode ser um corrupto que fez. Devem tem molhado a mão dele, na certa!

É bem verdade que tudo isso se deve à televisão. Depois que as tevês passaram a mostrar Seu Lunga, um cearense mais bruto do que mourão de porteira, surgiram muitos e muitos imitadores tentando, inutilmente, ameaçar o posto do nordestino brabo. E original!

Ainda a propósito dessas listas que de tempo em tempo circulavam em Santa Maria, lembro-me de quando ainda morava na Casa do Estudante, na década de 1980, aqui em Salvador, por lá circulou uma relação com nomes de pessoas de caminhados mais feios da cidade. Nessa relação constavam Erlônio de Eli Tonhá, Cornélio de Antônio da Mata, Zé Manoel de Nana Lisboa, James de Vavá de Cirilo e o meu nome. Isso, mesmo! Não sei se nesta ordem, comigo em último lugar, claro. (Risos!).

Em passado não muito remoto, comentava-se que em Santa Maria havia um homem de força e brutalidade descomunais. Às escondidas, os capadócios diziam que ele, certa feita, foi pegar água no rio com um jumento. E como se sabe, jegue tem mais medo de água do que o demônio da cruz. Ignorando tal fato, esse brejeiro, como dizemos por lá, resolveu fazer um teste com o jerico.


Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2020.
No momento de encher as quatro latas d’água em dois caixotes de madeira, um em cada lado da cangalha, cada um com duas latas, tentou levar o animal para dentro do rio, na marra, no muque, o que facilitaria seu serviço. Mas o jegue empacou. Ele então segurou-o firmemente pelo cabresto e o puxou. Até certo ponto, obteve êxito, mesmo o bichinho especando na corda. O quadrúpede, no entanto, apoiou as quatro patas num terreno mais firme e dali não arredou pé.

Ao perceber a impossibilidade de puxá-lo para dentro do rio daquela forma, o forte e truculento sertanejo, que não queria perder o desafio para um jeguinho qualquer, teimoso, caminhou decididamente na direção do amuado asinino, levantou-lhe as patas dianteiras, arrastou-o com raiva, jogou-o no rio e, vitorioso, desabafou:

— Tá fazendo-se besta, seu fofa-chão inguinorante! Cê pode ser mais inteligente do que eu, agora, força, força cê num tem, não, seu miserave, fii duma égua!

Seguindo o mesmo caminho ou ilustrando outro ditado que diz: “duro com duro não levanta muro”, conta-se também que certo policial santa-mariense, ao fazer ronda noturna, deparou-se com um bêbado a provocar desordem. Ordenou que parassem a viatura e, incontinenti, deu-lhe voz de prisão:

— Teje preso, seu cabra!

— Num teje.

— Teje preso em nome da lei, seu desordeiro.

— Num teje.

— Vai embora, seu infeliz. Destá que o mundo te ensina.

Aqui em Salvador, também tem seus xucros famosos, só mudam mesmo de palavreado e de sotaque, porque não fica atrás nenhum pouquinho. É que vou mostrar a vocês.

Um amigo me contou que, quando era office boy de uma gráfica, estava numa imensa fila de um desses bancos bem populares. Aproximavam-se as doze horas. Uma desmedida fome deixava-o com os nervos à flor da pele. O caixa, na maior manimolência, na maior lerdeza do mundo, atendia cada cliente como se estivesse fazendo um grande favor.

De repente, vestindo impecável terno preto e portando uma maleta zero-zero-sete, um sisudo cidadão, sem a qualquer cerimônia, vai direto ao caixa e entrega-lhe um monte de documentos. Aquele office boy não se conteve e soltou os cachorros no cidadão:

— Ô, meu bróder, o fim da fila é lá. Tá vendo, não, é?

— O senhor sabe quem sou eu? – questionou o ilustre desconhecido.

— O senhor pode ser a zorra que for, mas o fim da fila é lá — e apontou mais uma vez para o final da mesma, já querendo partir para briga.

— Eu sou é procurador da justiça, meu irmão.

— Meu irmão é lá ele. Você é percurador mermo é de pobrema. Num tá veno que o fim da fila é lá? Num tô aqui pra comer seu reggae, não, papá. Tá quereno se dá de bem pra cima muá? É isso mermo, meu rei? Adianta seu lado. Se pique, pai! Saí fora! Vai com Deus, abençoado!

E o procurador de caso, tão sorrateiramente quanto apareceu naquela agência bancária, recebeu de volta os documentos, recolocou-os na suspeita pasta e exalou no mundo sem deixar rastro. E a turma da fila aplaudiu delirantemente aquele contínuo desassombrado.

Referências:

BRUTO QUE NEM ARGOLA DE LAÇO. Jornal O Comércio Hoje. Abril / Maio. Santa Maria da Vitória, 2007.
NOVAIS NETO. Bruto que nem argola de laço. In: ______ Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Press Color, 2009. p. 149. 164p.

domingo, 19 de abril de 2020

Falência contábil de um amor

Neste poema, utilizo termos das Contabilidades Geral e Bancária para narrar hipotética história de amor. Confiram.

Esta poesia, Falência contábil de um amor, foi a conclusão de um curso realizado pelo Banco do Estado da Bahia (Baneb) para um grupo de funcionários, nos anos 1990, em que cada participante deveria apresentar um texto livre no qual pudesse demonstrar o que aprendeu.

Tempos depois, em 1994, o mesmo banco realizou um concurso interno de poesia do qual participei com o citado poema, logrando o segundo lugar, entre três vencedores, tendo com isso recebido uma recompensa de R$ 100,00.



O resultado do concurso foi publicado no Jornal AABANEB Notícias, Ano VI, Edição Nº 1, Janeiro de 1995 como o título Poesias Premiadas. A primeira colocada foi Ausência, de Sálvio Emanuel Batista Brito; segundo lugar, Falência contábil de um amor, de Adnil Novais Neto; e terceira classificada, a poesia Para onde foram os pardais?, de Raimundo Marinho.

Jornal AABANEB Notícias e cópias do Chequemate BANEB (frente e verso). 1995. Acervo do autor.
Aproveito a oportunidade para oferecê-la aos meus ex-professores e ex-colegas do Curso de Contabilidade do Centro Educacional Santamariense, primeira turma de formandos da cidade, em 1977. Dedico ainda aos meus ex-colegas do extinto banco, que boas lembrança nos deixou, onde tive a mais valiosa experiência profissional.

Este poema faz parte do meu terceiro livro, Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória, páginas 95-96, publicado no ano de 2009, por ocasião dos 100 anos de emancipação política e administrativa do município.

Formandos da 1ª Turma do Curso de Contabilidade do Centro Educacional Santamariense. Solenidade realizada no Clube Social, Literário, Dramático e Recreativo 2 de Julho. Santa Maria da Vitória, Bahia. 1977. Acervo do autor.





Alunos do 2º Ano do Curso de Contabilidade do Centro Educacional Santamariense. 1976. Acervo do autor.
Festa junina na Central de Cobrança do Banco do Estado da Bahia. Encenação de casamento na roça. Década de 1980. Acervo do autor.

Festa junina na Central de Cobrança do Banco do Estado da Bahia. Encenação de casamento na roça. Década de 1980. Acervo do autor.
Festa junina na Central de Cobrança do Banco do Estado da Bahia. Encenação de casamento na roça. Década de 1980. Acervo do autor.

Falência Contábil de um amor


Quando nosso amor parecia um bem durável,
Você só via crédito em meus sentimentos
E torcia muito por um resultado positivo.
Tudo era lindo porque o lucro esperado
Indicava uma inflação de felicidades.

Nossos sonhos eram capitalizados
E as evidências circulantes tendiam
Para uma desejada e feliz junção
De um amor realizável a curto prazo.
Foram dias em que o saldo positivo
Era o resultado da compensação amorosa.

Mas tudo tem um fim e um preço e,
Muitas vezes, por mais ativo que pareceu
O amor real, faltou-lhe consistência.
Você passou a fazer cobranças absurdas
Que nem mesmo o aval da minha sinceridade
Conseguiu criar uma estabilidade relativa.

Passei então a ser absolutamente passivo,
Mas reclamando dividendos por ter sido
Sempre leal, sem o mínimo de desconto,
Para tentar, desse modo, reduzir a zero
Um suposto saldo devedor que criara.

Nada deu certo. Nada! E aquilo que parecia
Permanente e amparado por sólidos
Investimentos, tornou-se rendas de cobrança.
A insolvência absoluta foi tão cruel, tão cruel,
Que apesar de tantos e tantos réditos positivos,
Chegou ao fim o nosso deficitário,
Ao dar-se a fatídica Apuração do Resultado.

NOVAIS NETO. Falência contábil de um amor. In: ______ Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Press Color, 2009. p. 95. 164p.

domingo, 12 de abril de 2020

O ladrãozinho que caiu do céu

Nesta crônica, apresento Maninho da Churrascaria, figura que fez parte da minha infância, trabalhando de sapateiro na tenda de meu pai. Confiram.

Desde que me entendo por gente, como se diz popularmente, que o conheço, não como Maninho da Churrascaria, mas Maninho de seu Joaquinzinho, trabalhando na tenda de sapateiro do meu pai. Um homem calado, mas de sorriso fácil, muito laborioso, e que gostava de cantar músicas rotuladas “dor de cotovelo” ou “dor de meio de braço”, para assim amenizar o dia.

Tenda de Tião Sapateiro, onde é hoje a Tenda de Nélson, seu irmão. Na foto: Maninho, Arnaldinho e Nélson Neves. Foto gentilmente cedida por Arnaldo Oliveira (Arnaldinho) a Nélson Neves, que me presenteou. Foto: Anos 1960.

Na tenda do meu pai, Tião Sapateiro, na cadeira em que Maninho sentava, na verdade, um banco com assento de couro, havia um enorme buraco circular bem no meio, o que aguçava minha curiosidade de menino, porque eu não entendia a razão daquele furo. Porém, segundo ele, “era para não ter hemorroida”. Só isso mesmo?! Sei não! Tenho minhas dúvidas!

Quanto ao apelido Maninho da Churrascaria, já que ele nunca fez e tampouco vendeu churrasco, adveio do nome do ponto, anteriormente, Churrascaria do Gaúcho, que fechou as portas. Maninho mudou-se para o local e sequer tirou o nome, por isso passou a ser conhecido por Maninho da Churrascaria. A bem da verdade, o que ele vendia de origem animal era apenas salsicha, quitute, mortadela e ovo cozido. Vendia também um famoso doce de leite, além de bolo, pinga, cerveja, refrigerantes, refresco de Q-s
uco em garrafa de Sukita, bombons Nilva e batida de limão etc.

O pai de Maninho, seu Joaquinzinho, era fiscal da Prefeitura, que tinha a obrigação, dentre outras, de verificar o cumprimento de uma lei municipal chamada “portas abertas”. Isto é, esta lei tinha por objetivo cobrar imposto de quem comercializava produtos em bodegas, vendas, armazéns etc. Seu Joaquinzinho era, também, dono de uma vendinha em sua casa, onde se podia comprar diversos mantimentos, inclusive uma famosa puxa ou puxa-puxa, doce grudento, de consistência elástica, 
que era uma delícia, feito de melaço de rapadura por sua esposa, dona Lídia. E que acabava logo.

Maninho, cujo verdadeiro nome só vim a saber, quando alinhavava esta crônica, é Manoel Ferreira do Nascimento, como consta no seu batistério, na certidão de nascimento etc. Ao casar-se com Francisca Graia, conhecida por Dita, passou a ser Maninho de Dita, como é costume no interior deste imenso Brasil apelidar as pessoas aditando nome de pai, mãe, cônjuge, algo, fato, profissão, alguma coisa que o identifique melhor. Seguindo a tradição, a esposa do nosso protagonista não ficou ilesa e virou, naturalmente, Dita de Maninho da Churrascaria.


Qualquer que seja o Maninho, é ele o mais famoso “papagaio de pirata” que conheci, sem qualquer conotação pejorativa, diga-se de passagem. Está em quase todas as fotos de acontecimentos importantes da cidade. Tive eu, também, o enorme privilégio de tê-lo numa foto, quando da noite de autógrafo por ocasião do lançamento do meu primeiro livro, Flutuando na Areia, há mais de 30 anos.

Maninho na frente do palco da Filarmônica Seis de Outubro. 1988. Acervo do autor.
A primeira festa de que participei, foi o casamento de Maninho. Eu, com sete anos, e meu amigo Jairo Rodrigues, com seis. Foi ele, inclusive, quem me ensinou a cantar uma de suas canções prediletas, Paixão de um homem, de Waldick Soriano. Esta foi a primeira música que decorei. Ele também me ensinou a contar. Eu sabia fazer isso até 19 e parava por aí. E Maninho então dizia para mim:

— De 19 pula pra 20, e aí vai: 21, 22, 23...

E eu, seu aluno, já a me sentir dono da situação, continuava:

— Vinte e quatro, vinte e cinco... vinte e nove, vinte e dez, vinte e onze...

Maninho abriu um imenso sorriso e me ensinou de novo:

— De 29 pula pra 30 e vai até 39. De 39 vai pra 40, e daí pra frente – e assim, nessa “pegada”, cheguei a 99, parei e perguntei ao meu mestre:

— E agora, Manim, de 99 pula pra quanto?

— De 99 pula pra cem e continua do mesmo jeito.

Uma vez mais, achando-me dono da situação, continuei minha contagem:


— Cem um, cem dois, cem três... — e o professor Manim me corrigiu em cima da bucha:

— Cento e um, cento e dois, cento e três...

— Oxente, Manim, tá errado. Você falou nestante que de 99 pulava pra era cem e não pra cento. Como é então?

— Mas é assim mesmo — tentou ele inutilmente contrariar minha lógica de criança. E mesmo sem entender direito, fiz isso até mil. Ufa! Nunca me esqueci das suas aulas.


Lembro-me como boa recordação e alegria, que o filho de seu Joaquinzinho Fiscal também aprontava comigo, não somente me ensinava a contar e cantar. Juntava-se a Nélson Neves, meu tio, para que eu imitasse, aliás, como eles mesmos diziam, para que eu remedasse os considerados os doidos de meus tempos de menino, tais como Quincão, Chico Doido, Besta Fera e, principalmente, Júlio Doido.

Meu querido conterrâneo tinha uma inseparável companheira: uma bicicleta Monark, vermelha, reluzente, muito bem cuidada, que não emprestava a ninguém, e que lhe servia de transporte rápido para deslocar-se para onde houvesse um acontecimento, uma multidão, um fotógrafo.


Maninho e sua bicicleta Monak. Foto gentilmente cedida por seu filho Diógenes. Acervo familiar.

Santa Maria da Vitória, no entanto, cresceu muito, o que lhe exigiu mais rapidez nos deslocamentos, obrigando Maninho a adquirir um veículo mais ágil. Comprou, portando, uma motocicleta, igualmente vermelha, e uma flanelinha da mesma cor, sempre à sua disposição para limpá-la. As pernas do filho de Joaquinzinho já não tinham mais o desempenho da juventude, o que é normal, porque janeiro dá, janeiro toma”, segundo o adágio popular repetido por colega e amigo xique-xiquense, Paulo Teixeira.

Novais Neto e Maninho. Fotos de celular: Raquel Queiroz. 2019.
Maninho de Dita era dono de um bar na Praça da Bandeira, local muito frequentado por seus amigos, lugar perfeito para pôr o papo em dia. Lá se sabia de tudo que acontecia na cidade. Seus mais fiéis frequentadores eram Zé de Paula, Doxa, Jaime Charuto, Manelinho, Pedrinho, Aroldo Paes, os irmãos Wilson e Zezinho de Henrique, Quinca de Zezito, Quinca de Jaime Novidade, Dui, Tuca Tonhá, Queto de Augusto, Pedro de Afonso, os irmãos Dida e Togim de Protógenes, Tõi de Palu, Tõi da Camab, Isoterano, Fernando Santana, Flávio Bonfim, Daltro, Renato de Naná, Ataidinho, os irmão Tõi Mora e Miranda de Altamiro, Paulinho de Nestor, Zé Sugesta, os irmão João e Robertinho de Gildésio, Bequinha, Chiquinho do Santa Clara etc.

Além desses habituais frequentadores, a turma do futebol sempre se fazia presente, principalmente, depois de jogos. Eu e meus colegas de escola, como Messias Chaves, Juscelino de Tibério, Vandinho Lisboa, os irmãos Saulinho de Milu e Batista de Quinquinha (ou do Correio), Tito Gardel, Neno Graia, Newilton de Gildésio, Agnelo Profissi, Jurandyr, Jaiminho Coruja, Wilton de Afonso, dentre outros, aparecíamos por lá, à noite, nos intervalos ou depois das aulas. Quando havia festa no Clube Dois de Julho, o bar ficava entupido de gente.

Meu compatrício abria o bar bem cedo, porém, era seu sobrinho Litinho (nome fictício) quem tomava conta até perto do meio-dia, quando Maninho vinha liberá-lo para o almoço. Aguardava seu retorno, que não demorava, para só depois ir fazer a mesma coisa: pegar a boia e só voltar lá pelas quatro horas da tarde, quando o Cine União começa a anunciar seus filmes.

Litinho tinha o hábito de tomar um aperitivo antes do almoço, no que era repreendido veementemente por Maninho, motivo de vários sermões. Para tentar ludibriá-lo, Litinho deixava a dose já pronta, bem escondidinha, que era para quando Maninho viesse chegando, lá pelas 11 horas, tivesse tempo de beber sua preciosa e indispensável aguardente, “para abrir o apetite”, dizia ele.

Certa ocasião, Maninho chegou antes do combinado, chegou mais cedo, e Litinho não havia ainda preparado seu aperitivo costumeiro. Ficou, por ali, adiando a saída, à espera de um descuido do tio para tomar sua bebidinha. Maninho, entretanto, começou a dar-lhe pressa, pois precisava que ele fosse almoçar logo e voltar em cima do rastro, visto ter inadiável compromisso bem no início da tarde. E, neste impasse, nesta enrolação toda, eis que repentinamente, do nada, algumas pessoas passam correndo atrás de alguém em direção à Rua de Cima, a gritar:

— Pega o ladrão! Pega o ladrão! Pega o ladrão!

Meu amigo da churrascaria não contou conversa, esqueceu-se do compromisso, passou a fome, montou rapidinho na sua bike e saiu em disparada atrás do ladrão. Aliás, atrás da notícia.

E, Litinho, finalmente aliviado, foi para a calçada do bar, mirou a Igreja Matriz bem a sua frente, ajoelhou-se e, de mãos postas, como o olhar voltado para o Infinito, exclamou, agradecido:

— Ô ladrãozim que caiu do céu! Muito obrigado, meu Deus! — e sorveu, desse modo, sem qualquer pressa, feliz, sua deliciosa e tão desejada cangibrina.

E agora? Agora, só lhe restava esperar e esperar pela volta do dono do boteco, porque somente Deus, o mesmo Deus que lhe mandou o providencial ladrãozinho, poderia trazer Maninho de volta. A que horas? Isso não se poderia prever. E Litinho sabia disso.

Quem sou

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode p rever e prevenir-se de algo que não de...