segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Tertúlia plácida para acalentar bovídeo

Apresento-lhes, nesta crônica, Baiano e Sinhô, santa-marienses de linguagem enigmática e trágico fadário.

Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2019.
Você sabe o que vem a ser um sujeito indobeclível? E uma pessoa sub-relevapes, o que será afinal?

Certamente não sabe e jamais saberá. Dicionarista algum registrou estes termos. Mas eles existem. Não têm sinônimos. São adjetivos comuns aos dois gêneros. Servem tanto para elogiar quanto para desqualificar alguém. São pau-pra-toda-obra, no prolóquio popular mais adequado.

Essa é nossa Língua: idioma de origem românica, filha benquista do Lácio, a brindar-nos um horizonte de belas palavras. Peca por não ser tão técnica e objetiva como o Inglês e o Alemão, por exemplo. Ganha, porém, em sonoridade e plasticidade só comparável a outras línguas de origem latina.

Poucos são os privilegiados que a manejam com delicadeza e arte, e deixam fluir frases grandiloquentes que ecoam como canção de ninar.

É o que acontece, por exemplo, com aquele preciosista incorrigível que, a propósito de comentários sobre eclipse, esnobou a perífrase vernacular: “na pretérita centúria, meu progenitor presenciou o acasalamento do astro-rei com a rainha da noite”, em vez de simplesmente dizer que “no século passado, seu avô viu o eclipse solar”.

Quando esse mesmo amante-complicador do óbvio e simples chega a um boteco, pede que lhe sirvam “uma solução aquosa de rubiácea”, em lugar do apreciado cafezinho. Se deseja haurir uma cerveja, pede “um fermentado gélido de Hordeum vulgare”.

O mesmo cidadão preciosista não poupa sequer nosso líquido universal – a água. Uma vez sedento, para pedir um simples gole de água, solicita um copo de “protóxido de hidrogênio”, remetendo-nos à Química Mineral.

Certa feita, metido numa discussão que não lhe convinha, exatamente aqueles bate-bocas que não chegam a lugar algum, como diríamos: “conversa mole para boi dormir” ou “tertúlia plácida para levar bovídeo aos braços de Morfeu”, vociferou o preciosista: “vamos parar com esse colóquio flácido para acalentar bovino”.

E até mesmo para referir-se à batida frase “cada macaco no seu galho”, ele prefere o circunlóquio biológico: “cada símio na ramificação arbórea que lhe é conveniente”. Que chique, não é?!

Outros, entrementes, à margem das belezas do nosso vernáculo, mas admiradores dos bons falantes, chegam a criar palavras, mergulham fundo em neologismos e deixam boquiaberto quem flagrasse, por exemplo, Baiano e Sinhô simulando uma contenda.

— Você, Sinhô, não presta. Você não passa de um safado sub-relevapes.

— Pode ser, Baiano, mas você é um camarada subsindiques, um pau-d’água-de-marca-maior, isto sim! E te digo mais: mesmo assim, se eu morrer, você vai correndo atrás, seu indobeclível.

— Sabe de uma coisa: vamos parar com isso. Vamos deixar de muita renoclênia, porque o que somos mesmo é um bando de intratapes — finalizou o sempre magnilóquo Baiano.

Eles se foram. Adejaram céleres num atro dia para um mundo inconcebível e incognoscível. Lugar, por certo, onde sua linguagem louçã e enigmática encontrará ouvidos que bem melhor os entenderão.

Baiano, depois de uma noitada etílica, afogou-se nas águas do Rio Corrente, em Santa Maria da Vitória, no rosicler da aurora. Enquanto Sinhô, sorumbático e inconsolável, apartado abruptamente do amigo, despediu do mundo – também afogado – no mesmo aziago dia, no arrebol vespertino. E lá se foram os amigos indobeclíveis e sub-relevapes, vítimas da dipsomania.

Salvador do Mercado, folgazão e piadista contumaz, num piscar de olhos, fez verdadeira a máxima popular:

— Isso é que são amigos! Até debaixo d’água!

Finalmente, só para deleite, apreciemos o soneto, por título A uma deusa, atribuído ao poeta maranhense, Luís Lisboa, quando ele usa e abusa de neologismos, quase sempre por força de rimas.

Tu és o quelso do pental ganírio,
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomo-genério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,
De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbânceas do pental perônio.


Viram só! Inventar palavras não é privilégio apenas de Baiano e Sinhô. Gente letrada também gosta de falar difícil e muitas vezes nada diz. O sabido também pode ser vaniloquente como meus saudosos conterrâneos.

A propósito, os termos rebuscados utilizados nesta crônica, raramente ouvidos no falar cotidiano, foram a forma encontrada de deixá-la de acordo com as perífrases, sobretudo lembrar Baiano e Sinhô, e não derramar inutilmente palavras difíceis para demonstrar falsa erudição.
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Obs.: Crônica revista, extraída do livro "Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória". Salvador: Prescolor, 2009. p. 153, 164 p. Esta crôncao também teve sua primeira publicação no Jornal Comércio Hoje, de Santa Maria da Vitória (BA), edição de setembro/outubro-2007.

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