segunda-feira, 6 de maio de 2019

A língua do P dos meus tempos de ginasiano

Como estabelecer um diálogo supersecreto usando essa linguagem, mesmo assim, com a devida cautela. Se não, o que seria secreto, deixa de ser. Confira nesta crônica.


Tenho uma mania que certamente não é “privilégio” meu: guardar coisas inúteis, badulaques, sob o improvável pressuposto de que “algum dia vai servir”. É bem verdade, no entanto, que às vezes tal raciocínio se confirma, como pode ser constatado nesta crônica.

Alfabeto Janoka 1977. Foto do autor.
Ao revirar ocasionalmente uma caixa desses guardados, dentre eles algumas correspondências de mais de quatro décadas, deparei-me com um pedaço de papel-jornal amarelecido pelo tempo, datado de 18/4/1977 e por mim assinado, a mostrar-me algo que a memória já havia arquivado no escaninho do esquecimento para sempre, é o que suponho.

Naquele pedaço de papel, há um alfabeto datilografado e  batizado de “Janoka”, produto da imaginação de um primo deste cronista, George de Wilson Barros, e de João Nogueira da Cruz, amigo e ex-colega secundarista que não vejo há muitos anos, atualmente, morador da Capital paulista, reaproximado pelo Facebook.

A finalidade do estranho alfabeto, segundo eles me contaram, era para fazer “cola” durante as provas, a conhecida “pesca”. Achei-o bem interessante, e Joãozinho de dona Rosa, como é conhecido meu amigo, deu-me uma cópia, que datilografei e guardei juntos a badulaques e alfarrábios.

O Janoka, no entanto, tem grave limitação: só pode ser escrito, jamais falado. Afinal, são apenas símbolos que correspondem às letras do nosso abecedário e os números naturais de zero a nove. Repassei a novidade ao colega Messias Chaves, que nem deu importância, mas me ensinou a “língua do k”, sonora e facílima, que jamais tinha ouvido falar. Nela, você apenas acrescenta o “k” antes de cada letra da palavra. Com exemplo, o vocábulo “você” fica assim: k-vê-k-ó-k-cê-k-é. Fácil, não é?

Pois bem, como não foi difícil de aprender, virou febre, só rolava o “novo idioma”. Quando, entretanto, começamos a dele enjoar, eis que o próprio Messias aparece com outro, de som esquisito, que funciona da seguinte forma: após cada sílaba da palavra a ser “traduzida”, juntam-se mais duas, trocando a consoante pelas letras “f” e “r”. O termo “você” vira: vô-fô-rô-cê-fê-rê. Que coisa mais feia! Durou bem pouco. A aceitação não foi boa e nunca mais falamos em outro idioma que não fosse mesmo nosso românico Português, maltratado, é bem verdade.

Não é que, dia desses, deparei-me com o conto "A língua do P", do livro "A via crusis do corpo", de Clarice Lispector, escritora e jornalista brasileira, de origem judia, nascida em Tchetchelnik, na Ucrânia. Fiquei muito surpreso, porque também já conhecia tal língua. Só não me lembro como aprendi. Certo é que alguém me ensinou. Depois disso, ouvi uma composição de Gilberto Gil, interpretada por Gal Costa, com o mesmo título do conto de Clarice.


O conto da escritora, por sua vez, me trouxe à luz um fato ocorrido num coletivo, quando voltava do trabalho para casa, à noite. Duas garotas conversavam animadamente num banco a minha frente. Como o ônibus se encontrava vazio, percebi que elas se comunicavam utilizando um vocabulário diferente, como se fosse codificado. Agucei bem a audição e constatei que falavam a “língua do p”. Assim, aquela íntima e inusitada fofoca despertou-me a curiosidade e resolvi tirar uma de detetive.

Elas contavam — desculpem-me pela inconfidência — sobre determinada festa que haviam estado, que “cataram” alguém e que foram parar num motel, onde rolou o maior reggae. Sorriam muito, divertiam-se à beça e pormenorizavam a bela e inesquecível noitada, regada a bebidas, certas de que ninguém, por perto, naquele coletivo estivesse a entender sua enigmática linguagem.

Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2019.
As duas garotas se esqueceram, entretanto, do alerta que faz a sabedoria popular: “mato tem olho e parede tem ouvido”. Se disso tivessem lembrado, teria sido de bom alvitre precaverem-se, porque poderia haver algum passageiro naquele buzu, sem levantar suspeita, para confirmar a veracidade do citado adágio, na condição de “mato e parede”, com ouvidos aguçados e a gravar tudo, o que efetiva e felizmente — para existência desta crônica — comprovou-se.

Chegou, finalmente, a hora de eu descer daquela jardineira. Antes, resolvi fazer-lhes uma gracinha, dar-lhes um susto. Virei, então, para ambas e disse-lhes, bem pausadamente: “Ê-pê-upu en-pen-ten-pen-di-pi tu-pu-dó-pó”. “Eu entendi tudo”, traduzindo. E anônimo, da mesma forma que entrei naquela marinete, dela saí, tranquilamente!

E as duas conversadeiras, de estranho idioma (para alguns), esbugalharam os olhos e, petrificadas, entreolharam-se. Ato contínuo, deram bela, estridente e maliciosa gargalhada. E eu me fui, deixando-as com a pulga atrás da orelha. E a deixar-lhes uma boa lição para aprender e praticar. Será?

E, assim, o alerta do dizer popular mostrou-se verídico. Cuidado, portanto! “Mato tem olho e parede tem ouvido” que, no mundo hodierno e tecnológico, evoluiu bastante: mato tem olho emétrope e parede, audição perfeita, na forma, por exemplo, de um simples smartphone.

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Obs.: Crônica publicada no site Matutar Notícias em 4/7/2017. Disponível em:: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/novais-neto-a-lingua-do-pe-dos-meus-tempos-ginasianos/>.

5 comentários:

  1. Se fosse libidinoso, certamente teria esperado para rolar algo mais. Mas, Novais é gênio, e gênio não se dá a algo tão ignominioso. Linguagem bem complicada essa.

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  2. A língua do p usei muito é super interessante rsrs. Novais com suas lembranças crônicas sensacionais.

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  3. Ñ FAZIA A MINIMA IDEIA DO Q ERA A LINGUA DO p ,CREIO Q AGORA ESTOU UM POUCO POR DENTRO., GRANDE ABRAÇO ...

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