segunda-feira, 22 de abril de 2019

O carro na frente dos bois

Nesta crônica, relato momento angustiante e risível porque passei, tudo motivado pelo desejo de homenagear duas amigas queridas. E não deu certo. Leiam e divirtam-se.

Paulo, Toza, Novais, Lane e Nelinho. Foto: Acervo do autor.
Meter-se em assunto que não conhece direito ou em lugar onde não foi convidado é, no mínimo, atitude pouco previdente. Mas não foi assim que se comportou este cronista! Melhor dizendo: este conselho popular não foi levado em conta. Vejam, então, o que se passou.

Num certo ano da década de oitenta, registrou-se em Santa Maria da Vitória um casamento não muito comum: duas irmãs Tonhás, Eliane e Eliedna ou, simplesmente, Lane e Toza, filhas de seu Nona e dona Eli, contraíram matrimônio no mesmo dia. Como amigo de ambas desde a mais tenra idade, fui convidado especial e me sentia bastante orgulhoso disso.

Como eu não tinha paletó ou veste equivalente para ir ao evento, pedi emprestado ao colega de trabalho, Ramon Arouca, um blazer muito chique, vestuário jamais usado por mim. Entrei naquele troço e, desengonçado, mais parecendo Mazzaropi, segui pelas ruas santa-marienses até a Igreja Matriz, numa certa manhã.

No trajeto, calçando sapatos de solado de couro, feito por meu pai, e pisando em paralelepípedos bastante lisos, escorregava mais do que boi pisando em azulejo e expunha-me a gracejos do tipo: “Ô, Novais, você num tá veno que o defunto era menor que você?”, gritou alguém da Farmácia Imperial, de João Alexandre de Oliveira, referindo-se às curtas mangas do blazer, o que me obrigava a levantar um pouco os ombros, para não parecer tão curto.

Quando cheguei ao Templo, já repleto, nem sabia como me portar corretamente, uma vez que estar naquele ambiente não fazia parte dos meus hábitos. Mesmo assim o fiz, porque um dos irmãos das nubentes, Erlônio, esperava-me na porta e havia reservado lugares na primeira fila.

O casório transcorria tranquilamente, apesar de outro fato um tanto raro naquela cidade: uma freira seria a celebrante. Assim, “apesar das anormalidades”, de resto, tudo estava acontecendo dentro da mais absoluta ordem. E fiquei sentado entre Raimundinho de Maria de dona Lourdes e Erlônio, bem próximo a Glécia, minha irmã.


Paulo, Toza, Nena, Novais, Lane, Nelinho e Glécia. Foto: Acervo do autor.
A certa altura, já concretizados os enlaces, noivos risonhos e pais bastante felizes, a religiosa, após suas bênçãos finais, disse aos presentes que pudessem “tomar uso da palavra”, fazer suas felicitações e externar seus desejos de feliz e duradora união para os casais, se assim desejassem.

Milton Borba, pessoa habituada às solenidades litúrgicas, amparando-se em passagens bíblicas condizentes, desfilou palavras e frases bonitas, e concluiu conforme manda o rito:

 Rezemos ao Senhor!

 Senhor, escutai a nossa prece!  respondemos os presentes. Eu, evidentemente, por imitação.

Momentaneamente, fez-se silêncio naquela Igreja. Como mais ninguém se dispôs a falar, “tomei uso da palavra” e disse algumas coisas até bonitas (é o que me disseram depois, porque de tanto nervosismo não me lembrava de uma só palavra) e terminei imitando  equivocadamente  meu experiente antecessor:

 Senhor, escutai a nossa prece!

Esperei que os presentes respondessem alguma coisa, como fizeram com Milton Borba, mas isso não aconteceu. O que ouvi em seguida foi preocupante silêncio. Julguei que não tivesse me expressado direito, falado rápido ou muito baixo. E repeti em voz mais alta, empostada e vagarosamente:

 Senhor, escutai a nossa prece!

Pronto! Percebi, a esta altura, que algum engano havia cometido, porque o silêncio continuou. Os amigos próximos a mim, a sorrir, tentavam a todo custo me acudir e mostrar-me não ser aquela frase a ser dita, mas outra frase, ininteligível àquela altura. A suar frio e com o coração a mil por hora, entender o que eles falavam, era humanamente impossível. E isso me angustiava por demais.

Naquele momento, sem saber mais o que fazer, voz a tremular, ainda repeti o pedido ao Criador, como última cartada, solene e compassadamente, como que a implorar por socorro:

 Se-nhor, es-cu-tai a nos-sa pre-ce!  foi quando alguém, de algum lugar daquele Templo, compadecido da minha aflição, socorreu-me:

 Meu amigo, você botou o carro na frente dos bois. Tem que dizer primeiro é “Rezemos ao Senhor” e nós é que respondemos: “Senhor, escutai a nossa prece”. E não você.

Felizmente, os presentes ouviram meu anjo da guarda materializado dizer "Rezemos ao Senhor", como se eu mesmo o fizesse, pois, unissonantes, conclamaram todos, para alívio meu, um sonoro, vibrante e pausado: "Senhor, escutai a nossa prece!". E eu fiquei, ali, cabisbaixo, ensoado, sem saber onde enfiar a rubra cara, louco para sair daquele local e desaparecer mundo afora.

E assim, ante o rebuliço por mim causado, aquela solenidade matrimonial mais parecia uma feira livre. E Vanda Cirineu, administradora da Igreja, a olhar-nos fixamente sem esboçar sorriso, sedenta para nos dar uns pitos, merecidamente. Claro!

A irmã celebrante, coitada, por outro lado, com ares de preocupada, tentava a todo custo conter o próprio riso, que insistia em desabrochar. E num esforço inumano, ingente, implorava, com humildade franciscana, silêncio na Casa do Senhor. Inutilmente!

__________
Obs.: Crônica ampliada e revista, extraída do meu livro "Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória", p. 145. Salvador: Prescolor, 2009. 164p.

40 comentários:

  1. Não se preocupe caro amigo! São coisas da vida que acontecem para depois escrever e contar para as pessoas. Parabéns sim pela iniciativa de escrever. Já imaginou quantas coisas engraçadas ou interessantes acontecem e as pessoas não relatam e ninguem fiica sabendo!

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    1. Obrigado, amigo, pelo conselho, que vou seguir. RSRSRS. Grande abraço.

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  2. A leitura me proporcionou boas risadas amigo. Você relata como ninguém. Abraço.

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  3. Novais, vc sempre provocando risos. Bela crônica.

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  4. Novais,se não houvesse esse equívoco, não existiria essa crônica e nada melhor que você para descrever, muito legal! Abraço.

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  5. Como dizia meu saudoso pai: "a chuva caiu antes do trovão" (rsrs). Mas o que interessa, meu amigo Novais, é mais uma pérola que você nos brinda com sua ímpar sabedoria literária e especial brejeirisse e simplicidade de escriba da nossa terra. Parabéns!

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  6. Sao coisas que acontecem. Deve ter sido engraçado, mas na hora da aquele friozinho... Abraços figura!

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    1. Depois, o tempo vai curando e vira risos, agora. Abraço.

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  7. Senhor,escutai a nossa "presença " parabens pela sua coragem estava ali presente com seu jeito peculiar com outras palavras desejando os casais sejam felizes. (Só agora fiquei sabendo o nome de Toza kkk)

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    1. É a crônica também revelando identidades. Obrigado. Abraço.

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  8. Grande Novais, vc nos põe na cena do episódio. Maravilha. Parabéns.

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  9. Meu irmão, no meio da minha leitura tive que dar uma pausa para sustentar os minutos de risadas. Muito divertido e leituras como essas faz-nos querer aprofundar ainda mais em seus textos. Obrigado pela citação da minha pessoa no texto. Me sinto orgulhado.

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  10. figurinha ( risos) parece até eu estava na igreja kkkkk

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  11. muito boa essa crônica. faz com que damos valor a nossa história que muita das vez São esquesido no tempo.

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  12. Adorei! Se eu estivesse la, não conseguiria me conter e riria alto...vc é uma figuraça Novais! Kkkk

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  13. Gostei! Ainda bem que não estava la pois daria boas gargalhadas!!!

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    1. Obrigado. E eu riria junto. RSRSRS, como agora. Abraço.

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  14. Meu grande amigo ,como te adimiro e parabéns por esta crônica tao real e com uma riqueza de simplicidade do tamanho do seu coração. Foi divertido essa passagem.

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    1. Obrigado, pelo carinho das suas palavras. Grande abraço.

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  15. Oh Novais! Voce me fez voltar ao passado, fiquei aqui imaginndo a sena .....

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    1. Eu também sempre volto e me vejo naquela cena. Abraço.

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  16. Caro amigo,quem não se encabulou nessa vida!? Não se aperrei... não se amofine homi... Kkkkkkk

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  17. Boa tarde boi andando no piso de ceracerâ e boa são coisas do interior mesmo

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    1. Coisa do interior mesmo. Obrigado pelo comentário. Abraço.

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  18. Parabéns Novais, sobretudo, pela sua percepção, com o olhar para o cotidiano, que refresca nossa memória com fatos e coisas da vida, contada em forma de arte e, neste sentido, nós Santamarienses nos orgulhamos de termos você como conterrâneo.

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  19. Pô Novais, a foto tinha que ser com o blaiser.

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    1. Tirei porque estava curto e quente. RSRS. Mas faltou mesmo...

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  20. Acho que quem comentou sobre o tamanho do paletó foi Gordinho de João Alexandre. Muito bom, Novais, adorei.

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    1. Meu amigo Deva, pode ter sido mesmo.Fraternal abraço.

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