Era começo da década de 1970. Apesar de a repressão militar ser o papo predominante entre intelectuais e políticos da minha terra, o que o povo mais falava, na verdade, era a chegada da televisão. Na Praça do Jacaré, havia um aparelho numa torre repleta de propaganda, em frente ao Banco do Brasil. E a Copa do Mundo de 1974 já pôde ser vista na "telinha".
A novidade tecnológica mexia com a imaginação de muita gente. Afinal, o que muitos de nós conhecia sobre televisão se resumia a figuras de revistas, propagandas em jornais e o que as rádios Globo, Mundial, Bandeirantes e Inconfidência de Minas divulgavam em suas programações diárias.
Naquele tempo, eu era estudante no Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória. A turma, tida como bagunceira por alguns professores, era também reconhecida como estudiosa, e que marcou época, segundo eles mesmos. No entanto, com a notícia da chegada da “telinha”, nada mais nos prendia a atenção. Por esse motivo, a direção do colégio resolveu nos liberar mais cedo numa determinada noite, para que pudéssemos matar a curiosidade e conhecer esta tal televisão.
O local para a sessão televisiva foi o Hotel de Detinha – o Sertanejo Hotel – um dos mais conhecido e frequentado de toda região, porque um dos nossos colegas, Dalvo Graia (Neno), sobrinho da proprietária, havia falado com ela e tudo ficou acertado para irmos lá. Confesso que eu era um dos mais exaltado e ansioso para ver a geringonça eletrodoméstica.
Quanto ao citado hotel, este merece um abre-parêntesis. É que nós, principalmente, os meninos, sempre estávamos por lá fuçando o lixo à procura de carteiras de cigarros vazias de marcas raras, trazidas por viajantes e mascates, tais como Astoria, Albany, Consul, Pall Mall, dentre outras, com a finalidade de fazermos “dinheiro”. Estas marcas eram muito “valorizadas”. O mais barato era Continental sem filtro, que seria hoje, a fora de uso, cédula de papel de 1 real.
Finalmente, estávamos todos lá, no Hotel de Detinha, de um cachorro dorminhoco que ficou folclórico e referência para comparação: "fulano dorme mais que o cachorro de Detinha". Alguns, que já conheciam tevê, esnobavam. Outros como eu, a maioria da turma, não se interessava muito com as informações recebidas, queria mesmo era ver a engenhoca em funcionamento.
No canto de uma sala para refeições, com alguns hóspedes à mesa, estava lá o imponente televisor a dar o ar da graça com imagem chuviscada e fantasmática. O som, cheio de interferência e oscilante, não dava para se ouvir quase nada, ademais, somavam-se o burburinho e o calor da aglomeração de curiosos que nos deixavam a todos agoniados e suarentos.
Confesso: não gostei. A televisão por mim imaginada era diferente. E eu explico o motivo. Quando garoto, sempre futuquei essas coisas intrigantes. As bonecas das minhas irmãs eu as desmontava para ver o mecanismo que as fazia chorar. Um velho rádio Semp, mimo do meu pai, certa feita eu o abri, porque na parte traseira havia uma plaqueta com a inscrição: “Rádio e Televisão Semp”. Achava eu que ali dentro deveria ter alguma coisa sobre tevê, inobservada por meu pai. Resultado: não acertei montar, o bicho não funcionou. Tomei foi um puxão de orelha, apenas para ser eufêmico.
Quanto à televisão sonhada por mim era semelhante às antigas vitrolas, onde se deveria pôr um disco de vinil, o bolachão, e numa tela apareceria o cantor em imagem cinematográfica. A trazer aquela percepção para atualidade, já naquela época, e sem ter consciência disso, bem que poderíamos dizer que este cronista anteviu o outrora festejado e, hoje, o quase fora de moda e moribundo DVD.
Ainda sobre o nosso assunto, aliás, sobre uma propaganda veiculada na TV, Domingos Serpa, colega de turma, viu-se surpreso com este comercial: “Rádio Semp, sinal de festa em casa”. E, numa aula de Português, ele perguntou para nossa professora Arturzita Santana, onde estava o verbo da oração.
Ao que pareceu, a mestra julgou-se testada pelo discípulo questionador e não gostou nenhum pouco do que ouviu, porque o verbo “ser”, em elipse, parecia bem claro para ela, e a frase poderia também ficar dessa forma: “Rádio Semp é sinal de festa em casa”, o que seria o mais comum.
Acontecimentos à parte, a chegada da televisão acabou por tirar muita gente das praças públicas. A do Jardim Jacaré, outrora muito frequentada, já não tinha tanto movimento, tanto glamour, porque muitos preferiam ver as telenovelas, os programas humorísticos, o futebol e os filmes.
Gravura de Jailson Borges (Jão). 2019. |
Quando a tevê começou a popularizar-se, começamos a visitar as casas de dona Alice de seu Silvino, em frente à casa de meus pais, e a residência de Eli de Nona. Já nas roças próximas à torre, que ficava no Morro do Domingão, ponto mais alto do município, também se podia ver televisão. Foi aí que um compadre coscuvilheiro, ao encontrar com um companheiro (não se dizia colega, porque colega é boi de canga!), especula ou "entra na semana" do outro, como se diz modernamente:
— Cuma vai vancê, cumpade? Cumé que tá de televisão nova? Fiquei sabeno que o cumpade comprou uma Telefunken ni Rosi Rocha, lá na Casa União. E aí, cumpade, tá gostano mesmo da nuvidade?
— É novinha, cumpade, mas num presta, não. Aquele troço num vale meia-pataca inferrujada. Ô dinherim mal-impregado, meu Deus do Céu. Iante eu tivesse comprado um vitrola de segunda mão lá ni Bolivar de Juca das Queimadas. A pistiada é o tempo intirinzim na mesma latumia: quando magea, num prusea, quando prusea, num magea.
Se você não entendeu, vou tentar "traduzir" tão original linguajar, que vai ficar assim: "quando tem imagem, não prosa, quando prosa, não tem imagem". Ou ainda: "quando tem imagem, não tem som, quando tem som, não tem imagem". Creio que é por aí. Ou, então, sinta-se livre para "traduzir".
É esta, portanto, nossa benquerida Santa Maria da Vitória, típica cidadezinha interiorana, de tantas e tantas histórias e causos a nos provocar frouxo de riso, para nunca mais dela se esquecer.
Em tempo: Se alguém, de Santa Maria ou São Félix, tiver alguma foto da época, na qual apareçam pessoas vendo televisão, postarei com todo prazer, com os devidos créditos, evidentemente. E-mail: novaisnetto@gmail.com. Obrigado.
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Obs.: Crônica revista e ampliada extraída do meu livro "Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória". Salvador: Prescolor, 2009. p. 137, 164p.