sábado, 19 de abril de 2025

"Bom dia, minhas 100 pombas"

Dias atrás, ao visitar minhas memórias afetivas mais remotas, guardadas nos escaninhos atemporais, deparei-me como o início dos anos de 1970, mais precisamente o ano de 1971, quando ingressei no Curso Ginasial, no então Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória, que posteriormente viria a ser o Centro Educacional Santamariense (sic).

A alegria era imensa, dentro de uma camisa cáqui, de mangas compridas e calça de tergal de igual cor. No debrum da camisa, havia um traço indicativo do ano em que o aluno estudava. Aqueles que ostentavam quatro tracinhos, esnobavam. Eu ainda não. Feliz, estava meu pai, Tião Sapateiro, ao ver meu progresso, quando me fez uma revelação matemática que me deixou deverasmente curioso.

— Quando você for estudar Álgebra Elementar, começar a fazer contas não somente com números, mas com letras também, você vai ver como a Matemática é bonita.

Aquilo me fez pensar muito no que seria operar com letras e números ao mesmo tempo. Tião Sapateiro só estudou até o terceiro ano do antigo Curso Primário, porém, tinha sempre às mãos livros de Aritmética, como os do matemático luso-brasileiro Antônio Bandeira Trajano. Sua diversão era resolver questões envolvendo cálculos. E quase sempre me chamava para participar. Imagina!

Quando, finalmente, comecei a estudar a tal Álgebra, contei-lhe com alegria a novidade. Meu pai, então, apresentou-me uma história que parece haver retirado de livros dos tempos da Carochinha, tempos em que os bichos falavam e ave columbina não era presa para gavião, voraz ave de rapina. Eis o que ele me narrou, logo de manhã, quando me preparava para estudar:

— Numa manhã, um imponente gavião real pousou em uma árvore repleta de pombas brancas, e as cumprimentou, solenemente:

— Bom dia, minhas 100 pombas!

— Bom dia, gavião – respondeu uma delas, que fez algumas ressalvas:

— Cem pombas não somos nós; com outro tanto de nós; com a metade de nós; com a quarta parte de nós, e contigo, gavião, seremos 100.

Finalizada tão graciosa e imagética narrativa, meu pai fez a pergunta inevitável:

— Quantas pombas havia naquela árvore? – E, juntamente com Darci de Seu Abelino Novaes, seu amigo sapateiro, que estava na tenda, ele olhou para mim e esboçou um tímido sorriso no canto da boca, a mostra um ponto de ouro em um de seus dentes, num claro sinal de desafio.

Não sei se resolvi logo, de primeira. Não me recordo que ele tenha me ajudado, todavia, acredito que sim. E achei a resposta da imaginativa questão, que levei para sala de aula, mostrei aos colegas e ao professor de Matemática, Tércio Santana, de apelido Tutes.

Se você, por outro lado, não achou a resposta (ou sequer tentou encontrá-la), a resolução está no final desta crônica. Não se preocupe. Tentei ser bem didático.

Tempos depois, ainda estudante ginasiano, no também distante ano de 1974, o mesmo Centro Educacional onde estudava, abriu as portas para um curso de Eletricista Instalador, realizado nas férias juninas daquele ano, promovido pelo SESI/SENAI e ministrada pelo professor soteropolitano Wilson Bezerra, ex-aluno da Escola Técnica Federal da Bahia.

O curso foi muito bom e proveitoso, pois, ao final dele, consertamos a instalação elétrica do colégio e fizemos a primeira ligação com interruptor three way da nossa cidade, num comprido corredor da escola. Do curso, participaram, além deste que escreve, Charles de Adão Bodeiro, Zé Sugesta, Nem de Tenente, Isoterano, Neto de Seu Antônio Teixeira, Agnelo de
Donaricota, dentre outros.

Ao término do referido curso, nosso professor deixou uma questão de Matemática como lembrança de sua passagem por Santa Maria da Vitória. Na ocasião, o mestre fez a seguinte pergunta:

— Que horas são, se, para terminar o dia, faltam dois terços do que já passou?

Ele nos deixou tão somente a resposta e nenhuma dica a mais que pudesse nos ajudar. E partiu. Nunca mais tivemos notícia dele. Também, é verdade, não o procuramos. Naquele tempo não era fácil como hoje. Nem telefone havia na cidade.

Nos dias seguintes, em nossos passeios noturnos pela linda, romântica e acolhedora Praça do Jacaré dos anos primeiros, sempre nos encontrávamos, nós, ex-alunos de Wilson, e questionávamos sobre o problema por ele deixado. Uns nem tentaram, outros, como Agnelo, por exemplo, tentaram e resolveram, inclusive este cronista.

Agnelo de Donaricota, cujo nome é Agnelo Alves do Nascimento, que se autodeclarava goleiro profissional, acabou por incorporar a forma reduzida, Profissi, ao próprio nome, ficando conhecido, nos campos de futebol, como Agnelo Profissi. Amigo de infância e colega ginasiano, Profissi veio a ser um dos mais festejados professores de Matemática de várias gerações de alunos, fato que acabou por homenagear nosso mestre Tutes.

Por outro lado, quantos aos desafios matemáticos propostos, a resolução da historinha das pombas brancas está no final desta crônica. Se você também tentou encontrar a resposta, parabéns. Se não, pelo menos leu meu texto até aqui. Por isso mesmo, meu muito obrigado!

Ainda quanto à questão das pombas, ela me fez lembrar o livro “O homem que calculava”, do romancista brasileiro, nascido na cidade do Rio de Janeiro, Malba Tahan, heterônimo de Júlio César de Mello e Souza, engenheiro civil e professor de Matemática, em que ele narra a história de um árabe, que teria morrido, e deixado de herança para seus três filhos, 35 camelos a serem divididos segundo as frações: 1/2, 1/3 e 1/9. Esta, no entanto, é mais outra bela poranduba matemática.

Em relação à pergunta das horas, deixada pelo professor Wilson, ela me remeteu a determinado professor de curso pré-vestibular, do qual não me lembro o nome, que nos alertou quanto a questões de Matemática com poucos dados, como foi esta, que envolve interpretação textual. As que têm muitos dados, como o problema das pombas, normalmente são menos difíceis. Será mesmo?

Por fim, em ambas inquirições aritméticas, fico jubiloso quanto à beleza da benquista “Filha do Lácio”, nossa maravilhosa Língua Portuguesa, que consegue, mesmo numa ciência exata como Matemática, criar um cenário deveras onírico que, possivelmente, acabará por despertar até o mais retraído ou disperso aluno. Penso eu!

* * *

Agradecimento aos amigos e colegas da Transalvador, Jailson Cerqueira e Alan Lima, professores de Matemática, por confirmarem minhas respostas. E ao também colega e amigo Marcus Figueiredo, que ler meus escritos antes de publicá-los, o que muito me auxilia nas correções. Obrigado a todos! 

Redes sociais do autor:

domingo, 15 de dezembro de 2024

Historieta zodiacal

Às vezes, a vida nos surpreende tão imponderavelmente que nem mesmo o mais invulnerado coração pode prever e prevenir-se de algo que não desejaria. Certo casal, aparentemente inabalável, a viver muito bem o seu papel, estava prestes a descobrir que nem todo amor é para sempre.

O relacionamento parecia sedimentado no mais puro amor e, apesar de oscilações normais de todo casal de namorados, ninguém duvidava de que um final feliz inexoravelmente viria. Mas, muitas vezes, tudo é só questão de tempo! E o tempo é o Senhor da Vida.

O (in)esperado acontece: aquele casal separa. Cada um vai para o seu canto, tentando, de alguma forma, recomeçar, superar tristezas, mágoas e, claro, zelar pelas boas recordações deixadas. Os fatos estão aí para confirmar o clichê de que “a vida é um eterno recomeço”.

Passaram-se dias, meses e tudo parecia bem distante e calmo, quando então a vida os deixa frente a frente e amor do passado deu sinais de renascimento. Tiveram uma conversa amável. Depois, entrecortada por instantes de silêncio, questionamentos etc. Por fim, até meio desconexa. No entanto, portaram-se como pessoas adultas e conscientes de que cada um representa para o outro. Claro, o saldo foi bem positivo. Valeu o reencontro, pelo menos ficou flagrante de que uma amizade muito bonita poderia florescer. Há quem não duvida de que amizade é miniamor.

Este reencontro aconteceu num sábado, à noite, de um mês qualquer, de um ano já bem distante. Depois dele, cada um seguiu seu caminho, levando certamente o desejo de tentar de novo. Porém, em nome daquilo a que se chama razão, prometeram, cada um a si mesmo, “que dariam mais um tempo”. E o casal promissor de outrora continuou separado.

O lado pitoresco ou tragicômico que deu motivo a esta historieta aconteceu logo no domingo seguinte. Depois de encontrar-se desperto de um sono tranquilo e reparador, no entanto, ainda muito ensimesmado e distante, a relembrar naturalmente o papo que mantivera na noite passada com sua ex-musa, ele resolveu comprar um jornal numa banca mais próxima, para saber, dentre outros assuntos, das novidades do seu time preferido, o Tricolor Carioca. Estava a fim de espairecer!

Despreocupadamente, viu crônicas esportivas e deu uma espiadela no noticiário político. Sem mais o que fazer, passou a ler o Caderno de Lazer & Informação e se deteve na seção sobre Horóscopo, do Jornal A Tarde, de Salvador. Embora seja assunto pouco atrativo para si, lembrou-se do reencontro do dia anterior com a ex-namorada e, por via das dúvidas, achou prudente conferir as predições sobre o amor.

Ao ler e reler as previsões zodiacais daquele periódico, notou que ali se tratava de algo por demais burlesco, para entretenimento, e não escritos sérios da astróloga Madame SulaMita, como ele imaginou. Ainda assim, responsabilizou o destino ou, mais grave ainda, amaldiçoou a fatalidade.

Escritos em hilariante “portunhol”, reproduzo, ipsis litteris, os conselhos funestos do Horuescopo de Madame SulaMita, para o signo de Escorpión (o dele):

Non hay jeito, amiguito. Poña uno disco de Dalva de Oliveira en la radiola, apague la luz e vá curtir su passion. Su única saída és uno copo de viño, uno ombro amigo e el bolero, de los anticos. O uno tango. Argentino. Puedes optar. Solo non puedes esperar el retuemo de su amor. Isto non acontecerá. Mas tanbién puedes optar por su viziño. Non convence. Más consuela.

Para o signo de León (o dela), fazendo as devidas adaptações, visto que o Horuescopo de Madame SulaMita pareceu-me destinado ao público masculino, ele constatou predições ainda mais sombrias:

Mi amigo, olvida este amore que non tien más nadie a ver. Que más tu espieras deste relacionamiento? Que ela vuelte para ti? Puedes desistir e partir para otra. Mi bolita me muestra su mujer en una bella playa, con uno gato de fechar comércio e una tanguita de subir até el valor del cruzado. No bicho, cabrón.

E aí, como justificar uma brincadeira inofensiva de jornal que, parcialmente, revelou-se um fato? Pelo menos, certo é que, para ambos, uma das “previsões” foi certeira e fatalística: “Solo non puedes esperar el retuerno de su amor. Isto non acontecerá”.

E... não aconteceu! Os dias futuros confirmaram o vaticínio da Madame SulaMita.

Finalmente, de quem é a culpa? Do destino? Da fatalidade? Ou, comodamente, diria que são fatalidades do destino? Não importa quais sejam as respostas, elas, decerto, não justificarão os desígnios da sorte. Ou da vida.

Agosto/1988

Referência:
NOVAIS NETO. Flutuando na areia. Edição do autor: Salvador, 1988. 112p, p. 103.

sábado, 9 de novembro de 2024

Crônica para os meus Sessenta e Sete

Dia 24 de outubro último, meu aniversário, Justino Cosme gravou dois vídeos meus alusivos à data, nos quais declamo duas trovas à margem do Rio Corrente e na Praça do Jacaré, em Santa Maria da Vitória: uma das trovas, de caráter humorístico, e outra, bem comportada, a mostrar um poeta reflexivo.







Postei essas filmagens nas redes sociais como também as enviei para minhas listas de transmissão do WhatsApp. Quase que instantaneamente, como sempre acontece por esse meio de contato, passei a receber inúmeras felicitações. Não pude responder na mesma velocidade. Fui, humanamente, respondendo a todos aos poucos, ora com economia vocabular, ora com “curtidas” ou emojis.

Dentre essas mensagens – umas maiores, escritas; outras menores, na forma de memes e emojis
, essa coisa toda do mundo digital –, destaquei três delas para redigir esta crônica. A primeira veio da amiga Clara Alcântara, mensagem carinhosíssima, abaixo transcrita:

“Meu caro amigo,

Hoje celebramos não apenas mais um ano da sua vida, mas também a beleza das suas palavras que nos tocam e inspiram. Que este novo ciclo seja repleto de versos novos, rimas soltas e muita criatividade.

Que a vida te presenteie com experiências que se transformem em poesia e que você continue a encantar o mundo com seu olhar sensível.

Feliz aniversário! Que a sua jornada seja iluminada por sonhos e muitas histórias para contar!

Com carinho,

Clara Alcântara”


Outra mensagem me veio em versos, para minha surpresa do amigo e colega de trabalho Cláudio Lima, com quem costumo falar de poesia e metrificação de trovas. Não é que o Cabo Lima (como o trato) fez uma poesia com três estrofes de versos (quase todos) em redondilha maior, isto é, setissílabos ou setíssonos, a comprovar perfeita assimilação do assunto!

“Uma homenagem ao amigo:

Parabéns para NOVAIS,
Pelos anos de LEILÃO.
A idade TANTO FAZ,
Pois está no CORAÇÃO.

Não escrevo só por MIM,
É por toda a COMISSÃO.
Amizade NÃO TEM FIM,
Tem começo e RAZÃO.

Aqui te CONHECEMOS,
Sua vida, sua HISTÓRIA.
Quando então PERCEBEMOS:
‘TU AMAS ESSA VITÓRIA!’

Em nome da Comissão de Leilão da Transalvador.

Claudio Lima.”


A última das três mensagens escolhidas, também de um colega de trabalho, não veio em versos, nem em prosa. Apenas apareceu sinalizado no WhatsApp que ele havia visto minha postagem, constatado pelos dois tiques duplos azuis. O amigo nada comentou, tão-somente encaminhou (por distração, assim creio) o link de um formulário para inscrição no “Plano Funerário Campo Santo Familiar”. Tomei um grande susto e – ato contínuo e impensado – respondi com um breviloquente “Boa noite”, quando ainda deveria ser “Boa tarde”, isso tudo por conta do imediatismo.

Vida que segue! Quem não se engana?! A Internet acelera ações e reações. Não abri o link do formulário. Pareceu-me aziago em demasia para tão belo momento de regozijo. Vade retro. Meus Sessenta e Oito – e outros mais – hão de vir, querendo Deus! E que seja assim!

domingo, 4 de agosto de 2024

Peripécia$ do Plano Real

Nesta crônica, relembro alguns fatos ocorridos durante a implantação do Plano Real que, no dia 1º de julho último, completou seu trigésimo aniversário de adoção no País.

Mais uma vez, nós, brasileiros, estávamos às voltas com mais um plano econômico do Governo. São tantos planos, tanta mudança de moeda, que saber se um níquel vale ou não vale é problema para banco resolver. Mas será que resolve mesmo?

Durante a última troca monetária, em julho de 1994, a confusão não foi menor. Ou melhor, foi maior ainda, dada a magnitude atingida, agravada principalmente porque a paridade não foi de mil para um, como normalmente acontecia. Isto é, 1.000,00 Cruzeiros, por exemplo, passou a valer 1 Cruzado.

Desta vez, no entanto, foi diferente e complicado: 2.750,00 Cruzeiros Reais passou a valer 1 Real, a chamada Unidade Real de Valor (URV). Foi nessa época que 1 Real valeu 1 Dólar Americano. Digo isso só para trazer lume àqueles que, eventualmente, nem se lembravam mais desse “fenômeno” pecuniário.

Cédula de R$ 1,00 - Primeira Família do Real (em circulação) - Julho / 1994. Foto: Novais Neto
A dificuldade tornou-se grande por envolver uma divisão meio complicada para muitos. E, para amenizar o problema, surgiram as tabelinhas de conversão, as famosas tablitas: mais um bom “jeitinho brasileiro”, sempre portada por muita gente. E gente sabida. A verdade é que a tablita facilitava muito, de fato.

Quando a troca estava sendo feita, logo nos primeiros dias, fui a uma agência bancária em Santa Maria da Vitória (estava em férias), para fazer a conversão de alguns trocados para a nova moeda. Recebi alguns reais, em moeda e em papel moeda. Por outro lado, fiquei estarrecido com a inusitada tabela de conversão confeccionada por aquele banco, coisa de quem não dispensa um só centavo.

Considerou o referido banco que CR$ 50,00 seria a menor fração da moribunda moeda, o Cruzeiro Real, desprezando – de propósito – as de CR$ 0,50; CR$ 1,00; CR$ 5,00 e CR$ 10,00, fazendo a “bonita” conversão, meio parecida com liquidação: CR$ 50,00 vale R$ 0,01 (seria R$ 0,018) e CR$ 100,00 valem R$ 0,03 (seria R$ 0,036). Em razão de a conta gerar uma dízima periódica, o banco não arredondava o valor, apenas cortava o algarismo excedente, no exemplo, o “8
 e o 6

Resultado de minhas contas que fiz, na ocasião, com base na tabela daquela instituição financeira. Se elas estiverem certas, ao trocar aquele banco 123 moedinhas de um centavo de real (algo bem provável, pela intensa movimentação de pessoas), estaria, no final do expediente, a lucrar, sem qualquer esforço, 2.750 cruzeiros reais, ou seja, um bonito “realzinho”.

A confusão foi tanta que presenciei caixa de banco destrocando dinheiro, vez que não havia como dar troco no novo padrão, dada a escassez do mesmo. E o banco, por sinal, era o mesmo que estava fazendo “aquela” conversão. Só que, desta vez, não lhe cabe qualquer culpa. Estava até ajudando as pessoas.

Saí, então, com a nova grana, exibindo-a a um e a outro, quando encontrei Erlônio, exímio “fazedor de conta de cabeça”, que me convidou para tomar uma cerveja, a fim de testar a credibilidade da moeda do presidente. Aceitei, só para ver a confusão.

Escolhida a vítima, Tõi, do antigo Bar Bola Branca de Tõi de Agostinho. Lá, bebemos uma cerveja e lhe demos dois reais para tirar um real e dez centavos (arredondados) ou, então, três mil cruzeiros reais, correspondentes ao preço da mesma. E ficamos a esperar pelo troco.

Um clima de expectativa pairou no ar. Nem quis olhar para Erlônio, pois estava certo de que ele daria uma boa gargalhada e todo o plano iria por água abaixo. Ficamos, sem pressão, a esperar o resultado, que não tardou a vir.

– Poeta, eu não tenho troco, não. Depois você me paga – propôs o dono do bar.

– Não! Não! De jeito nenhum! Pode me dar o troco em cruzeiros reais mesmo, a moeda velha, eu aceito.

Ao perceber que ele estava meio enrolado, tentei até dá minha contribuição. Ajudar, claro!

– Se você me der o troco em reais, é fácil: basta me voltar noventa centavos. Como eu sei que você não tem, me devolva dois mil e quinhentos cruzeiros reais. Está certo, figura!? E estamos conversados!

Erlônio, que observava nosso papo atentamente, quase a explodir em riso, confirmou, com seriedade, o que eu havia dito ao dono do bar.

Tõi, mais um vez, olhou-nos, meio desconfiado, e, tentando livrar-se do problema, insistiu:

– Tome seu real, poeta. Depois você me dá os dez centavos. Deixa de “sugesta”, moço!

– Não. Assim não. Me dá o troco em cruzeiros e tudo fica bem. Pode acreditar. A conta tá certa.

O dono do bar, maldizendo aquela cerveja e com receio de inevitáveis gozações, saiu-se muito bem, pelo menos para o bem da freguesia.

– Ô moço, sabe de uma coisa? A partir de hoje, a cerveja aqui é um real e ponto final. Tome seu dinheiro de volta, que minha cabeça não tá pr’essas coisas, não. Tenho mais o que fazer. Até logo, cambada!

Tudo isso aconteceu numa sexta-feira. No outro dia, sábado, seria a feira da cidade. E, por certo, a confusão seria bem maior. Muitos aproveitadores iriam lavar-a-égua, como diria Erlônio.

Bem cedo, fui à feira e presenciei cenas impagáveis, dignas de enriquecer o folclore popular, como as que registro a seguir:

– Quanto custa a dúzia da banana caturra, dona?

– Oitenta centavo.

– Então, eu vou levar uma dúzia, tá vendo? – apontando para a fruta – Cobra aí, por favor.

A vendedora recebeu um níquel de um real do freguês e deu-lhe o troco no valor de oitenta centavos de cruzeiros reais. Quando aquele senhor percebeu o erro, soltou a língua:

– Oxe! Não tô entendendo mais nada. A senhora tem que me voltar é oitenta centavos de reais ou então, dois mil e duzentos cruzeiros reais. Isso aqui tá tudo errado! Assunta direito, pra ver!

A velhinha olhou fixamente para aquele senhor com cara de bancário, e caprichou na resposta.

– Home, quá. Cê tá me achano cum cara de besta, seu moço. Cê acha qu’eu vou dar um tantão de dinheiro desse nu’a niquinha dessa. Sô besta, não!

Continuei na feira a curiar as contendas e, vez por outra, me deparava com “matemáticos” tirando dúvidas ou resolvendo pendengas. Nada, entretanto, que merecesse registro. Nada? Veja esta.

Como voltaria a Salvador no domingo, resolvi comprar algumas coisas e comecei logo pela indispensável rapadura. Parei numa banca e indaguei o preço:

– Quanto custa a rapadura, meu amigo?

– Setenta e dois centavo.

– E em cruzeiros reais?

– Míli quinhento, fregueis.

Agradeci e fui a outras bancas para comparar os preços, haja vista que muitos sabidinhos estavam convertendo à razão de um para mil. Ou seja: o que valia um mil cruzeiros reais passou a custar um real, resultando num aumento de 275%. É mole?!

A pesquisa foi válida e pude constatar que o rapaz não estava me vendendo caro, razão porque voltaria à sua banca. Nesse ínterim, encontrei meu pai – desafeto de calculadora, pois prefere fazer contas na ponta do lápis, – a garantir-me que pelo preço pudesse comprar. Estava muito bom.

Voltei, portanto, àquela banca e perguntei ao moço quanto ele me faria se eu levasse duas rapaduras. Ele fez os cálculos e brindou-me com esta pérola:

– 144 centavo! Num dá pra fazer por meno, não. Um dia de enxada de um trabaiador tá custano muito mais caro, seu moço.

E sempre que ocorriam esses planos, era “proibido” aumentar os preços dos produtos e para isso existiam os temidos fiscais. Evidentemente que os serviços públicos ficavam congelados por algum tempo, não aumentavam mesmo.

Aqui em Salvador, no entanto, deparei-me como algo inusitado. Como uma mudança acontecida em plano anterior ao Plano Real, que se equiparou a URV a 1 dólar. Nos planos anteriores, as divisões eram quase sempre por mil, isto é, o que valia 1 mil cruzeiro, por exemplo, passaria a valer 1 cruzeiro novo.

Cédula de Cr$ 10,00 válida entre 1º/11/1942 e 30/11/1964. Foto: Novais Neto

Cédula de NCz$ 50,00 (tornou-se Cr$ 50,00) válida entre 6/1/1989 e 15/03/1990Foto: Novais Neto
Num desses planos, creio que foi de Cruzado para Cruzado Novo, o valor que se pagava no Elevador Lacerda era de 50 centavos (Cz$ 0,50) que, dividido por mil, passaria a ser NCz$ 0,005 (meio centavo), moeda inexistente no nosso sistema monetário. Para resolver o impasse, a Prefeitura de Salvador majorou a tarifa para NCz$ 0,01 (um centavo). Isto é, o valor da passagem aumentou 100% em pleno congelamento de preços. Aí pode, né?!

Ainda sobre Planos Econômicos:


Como já foi dito no começo desta crônica, quando acontecia troca de moeda, era aquela apreensão. A primeira que presenciei, foi ainda no final dos anos 1960, quando o Cruzeiro (Cr$) passou a ser Cruzeiro Novo (NCr$). Bem jovem que era, apenas achava bonitinhas aquelas cédulas como a da Princesa Isabel, de cinquenta cruzeiros (Cr$ 50,00) com carimbo do Banco Central, informando que ela valia 5 centavos (NCr$ 0,05). E, na parte superior central da cédula, ainda mostrava que o nome oficial do Brasil era República dos Estados Unidos do Brasil.

Cédula de Cr$ 50,00 (tornou-se NCr$ 0,05) válida entre 1º/11/1942 e 30/11/1964Foto: Novais Neto
Por conta destas constantes trocas monetárias, devido a altas inflações, que chegou a 89,39% ao mês, em março de 1990, o que não ocorre nestes níveis há 30 anos, completados em julho último, cheguei a cometer alguns equívocos, que os narro a seguir:

O primeiro deles, foi em 1989, quando preenchi incorretamente um cheque. Nessa época, trabalhava no Banco do Estado da Bahia (BANEB) e nós, funcionários, preenchíamos vários cheques e pedíamos ao contínuo para sacar no caixa. Nosso contínuo era Seu Zé, um senhor de idade, que fazia isso com absoluta naturalidade. Nesse dia, entretanto, retornou a esbravejar:

— Olha, Seu Novais, não gosto de brincadeira comigo, não, sou um homem sério. O caixa ficou rindo da minha cara e me disse que essa moeda não existe no Brasil, não — eu explico:

Ao preencher um cheque de oito cruzados novos (NCr$), grafei oito cruzados “novais”. Por serem iguais as três primeiras letras de “novos” e “novais” (nov), a pressa ou minha falta de atenção, levou-me a cometer este erro. Resultado: tive que fazer outro cheque, com bastante cuidado, e eu mesmo ir ao caixa sacar a grana. Não tive coragem de pedir a Seu Zé, o homem estava a espumar e não aceitou meus pedidos de desculpa. Que Deus o tenha!

Cheque de NCr$ 8,00 preenchido “Oito cruzados novais” (1989). Foto: Novais Neto
Ainda nesse período de inflação alta, o BANEB, para dar credibilidade ao seu cheque especial, o Chequemate, inventou o PhotoChequemate. Tive um talonário dele e, de férias em Santa Maria da Vitória, “troquei” um cheque na empresa do meu irmão, Hermes Novais, “Hermes Laboratório Fotográfico”, cujo caixa era Glécia Almeida, nossa irmã. E retornei a Salvador.

Como sempre acompanhei os lançamentos em minha conta-corrente, percebi uma diferença que não foi possível localizar. Pensei, pensei e deduzir que poderia ser este cheque passado em minha cidade. Liguei para Glécia e ela me deu esta resposta:

— O cheque tá aqui comigo. Num depositei, não!

— Não depositou por quê? — quis saber.

— Pensei que fosse brincadeira sua, um cheque com foto — e prossegui.

— Como você fechou o caixa nesse dia, então?

— Botei aqui que você pediu o dinheiro emprestado, inclusive, falei com Hermes e ele não me disse nada.

Pedi a ela que depositasse o cheque o mais urgente possível, para que eu não recebesse a pecha de caloteiro, o que foi feito.

Cheque Especial do Banco do Estado da Bahia (BANEB) - PhotoChequemate. Foto: Novais Neto
A propósito de preenchimento de cheque, sempre procurei ter o maior cuidado, o que nem sempre dava certo. Sobre o episódio a seguir, que não tem, necessariamente, nada a ver com inflação alta, pois foi no início dos anos 1980, quando ingressei no BANEB, ao preencher um cheque do antigo Banco Econômico, nominal ao Paes Mendonça S/A, cometi um erro, que o caixa também não notou, mas o funcionário do banco constatou e devolveu o cheque.

Ao preencher o valor de Cr$ 124,90, por extenso, acabei omitindo a moeda, que aqui seria o cruzeiro, e ficou assim: “Cento vinte e quatro [...] e noventa centavos”, que acabou sendo devolvido pelo Banco Econômico, por “erro formal”, como se dizia à época.

Cheque de Cr$ 124,90 preenchido com omissão da palavra “cruzeiros” (1980). Foto: Novais Neto
Pois bem, aí estão algumas histórias que eu não poderia deixar de contar, principalmente agora, em que o Plano Real completa 30 anos de lançado, e os mais jovens não sentiram na pele o que era conviver com inflação nas alturas e com as famosas maquininhas de supermercado com seu barulhinho infernal o dia todo, em qualquer turno, sempre havia remarcação de preço de produtos. E corríamos para pegar algum produto antes de o funcionário remarcador chegar.

sábado, 18 de maio de 2024

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos lançamentos do livro “Manual para corações machucados”, de Bruna Lombardi, atriz e escritora, e do livro “A vida é um presente: mantras para o seu dia a dia”, da apresentadora e jornalista Rita Batista, na Bienal do Livro em Salvador, dia do encerramento. Comprei o ingresso com oito dias de antecedência.

Saí cedo de casa, às 9 horas, uma vez que um bate-papo e a sessão de autógrafos estavam previstos para iniciar às 10 horas. Na frente de casa, à espera de um veículo por aplicativo, tive que retornar para pegar um dos livros de Bruna, para que ela autografasse, pois havia esquecido. Antes do horário, apesar de tudo, eu já estava no local. Combinei com André Batista, irmão de Rita, que nos encontraríamos lá e visitaríamos os estandes de venda, enquanto aguardávamos a presença das escritoras.

Já dentro da Bienal, num salão muito bonito e repleto de visitantes, resolvi mandar um áudio a meu amigo para ver onde ele estava, uma vez que não logrei êxito em fazer uma ligação. Minutos depois, ele responde dizendo que não poderia ir, que aconteceu um imprevisto, coisa dessa natureza.

Diante disso, fui buscar informação onde seria o local da palestra de Bruna e Rita, consequentemente, a sessão de autógrafos. Qual não foi minha surpresa quando alguém, do balcão de informações, me disse que Bruna Lombardi não viria. Lamentei muito, afinal, havia levado o primeiro livro dela, de poesia, “No ritmo da festa” (1976), prefaciado por Chico Buarque, para que ela o autografasse, como também compraria sua nova publicação. A verdade é que já tenho outro livro dela, autografado.

Recordei-me, nesse momento, de que o colega de trabalho e amigo, Marcos Navarro, sabedor de que eu iria à Bienal, mandou-me um link de um site de notícias dando conta de que Bruna não estaria na Bienal. Ignorei, pensando se tratar de notícia anterior, quando ela cancelou um lançamento no Rio de Janeiro, 25/4/2024, por conta de uma virose, segundo noticiou algum site, que não me recordo qual.

Apesar das duas notícias negativas, não fiquei tão triste assim. Fui visitar os estandes. Num deles, ao sair com o livro de Bruna embaixo do braço, um fiscal tocou-me o ombro e me pediu a nota fiscal do produto que portava, assim, sem a devida sutileza.

– Não tenho mais, comprei há muito tempo – e lhe passei o livro. Ele folheou, viu as páginas amarelecidas pelo tempo, viu também um carimbo da minha biblioteca pessoal e, com “a cara sambando”, meio desconcertado, pediu-me desculpa um tanto formal.

Isso, confesso, não me tirou a paz, afinal, fui meio displicente mesmo. Não deixei, evidentemente, de orientá-lo a ter mais cuidado ao se dirigir a alguém. Era um jovem, por certo, incipiente no desempenho daquela profissão.

Passado esse “desagradável” momento, me dirigi até a Arena Jovem, local onde aconteceriam as palestras e os autógrafos. Fui direto ao lugar onde estava sendo vendido o livro de Rita Batista. A vendedora, entretanto, me informou que os exemplares haviam acabado e que um mensageiro fora buscar mais livros em Brotas, bairro relativamente próximo da Bienal.

Confesso que, agora, fiquei decepcionado. E, em quase pânico, mandei um desesperado áudio para André, o já referido irmão de Rita, que, sorridente, procurou me tranquilizar:

– Relaxa, poeta, o seu tá garantido… e autografado!

Relaxar? Como? Eu queria, sim, era vê-la autografando, tudo filmado e fotografado, do contrário não teria graça. Procurei, a pesar de bem contrariado, seguir o conselho do amigo.

Ensimesmado, entrei na Arena Jovem e fiquei a aguardar o começo do evento, procurando me apaziguar, era o que me restava, afinal. Faltavam uns 20 minutos para ter início as palestras, quando – acreditem – a luz foi embora. Tudo só não ficou às escuras porque uma larga porta deixava entrar a claridade do lindo dia de Sol soteropolitano.

O tempo passou e nada de a luz voltar. Passavam muito das 10 horas, horário previsto para ter início as palestras, quando, furtivamente, Rita aparece no palco e foi aquela gritaria. Coisa de cinema. Quando olhei para o público, pude ver como se fosse uma nuvem de pirilampos. Eram as luzes dos muitos celulares nas mãos dos ávidos admiradores de Batista, merecidamente.

A apresentadora desceu do palco para tirar foto com seu público, enquanto a energia não voltasse. Aproveitei a ocasião, aproximei-me dela quanto pude, já que estava rodeada de fãs, e posicione-me para fazer uma selfie. Que surpresa bacana, quando vi que ela estava bem à altura do meu ombro. Aproveitei e lhe perguntei pela mãe, Dona Angélica, para revê-la e naturalmente registrar o singular momento.

Tudo continuava escuro. Rita voltou para os bastidores. E a luz voltou também! Minutos depois, a jornalista Rita, Alan Castro, poeta que substituiu Bruna, autor de quatro livros, dentre os quais “O colecionador de saudades” (2023), e a mediadora Gabriela Almeida voltaram ao palco. Quanta alegria! Quando Rita se sentou, pegou o microfone e começaria a falar… Imaginem: de novo, tudo virou breu! A energia foi embora! “Mas será o Benedito”, pensei cá com meus botões.

Rita Batista, ainda assim, não perdeu o rebolado: brincou com a situação e retornou para o camarim. Minutos depois, sem previsão de restabelecimento da energia, fomos orientados a nos dirigirmos ao Café Literário, no segundo andar, onde ocorreriam as palestras e a tão esperada sessão autográfica.

Antes de dirigir-me ao Café Literário, pude observar que os livros haviam chegado (milagre!) e estavam à venda. Peguei uma pequena fila (“furei”, melhor dizendo, dado o meu sexagenarismo) e comprei meu presente. Agora, sim, tudo finalmente estava começando a dar certo! Ufa! Ufa! Ufa!

Foto: Reprodução / Internet
O esperado bate-papo ocorreu em mesa composta por Rita, Alan e Cristina, intitulada “A insustentável leveza do ser”, o que me remeteu ao livro de mesmo nome do escritor tcheco Milan Kundera. O poeta Alan declamou alguns belos e encorajadores poemas, além de fazer emocionante relato do parto da esposa, quando ela trouxe à luz a menina Serena. Rita, por seu turno, animadíssima e irreverente, brincou, cantou e encantou o público presente naquele espaço, cuja lotação chegou ao máximo.

E a sessão de autógrafos? Creiam, não seria ali. Fomos para um grande salão ao lado, com grades de ferro que formavam um labirinto, para que as pessoas não aglomerassem juntos aos escritores. Tudo certo, “no padrão
, como dizemos. Na minha condição de sexagenário, adiantei-me um pouco na fila de espera. Só um pouco mesmo, já que havia outra para idosos. Eu preferi ficar na muvuca.

Finalmente, chegou a minha vez. Uma moça, que ajudava na organização, ofereceu-se para filmar e fotografar, o que me livrou de fazer selfies malfeitas. Pronto, missão cumprida e muitíssimo feliz. Amei as fotos e o vídeo, sobretudo a saga, o que me inspirou esta crônica. Ufa! Ufa! Ufa!


André Batista e Novais Neto. Dique do Tororó, Salvador, Bahia. Foto: André Batista.


Quem sou

"Bom dia, minhas 100 pombas"

Dias atrás, ao visitar minhas memórias afetivas mais remotas, guardadas nos escaninhos atemporais, deparei-me como o início dos anos de 1970...